Na Itália a natureza é ‘redesenhada’ para ser despoluída
Antes que Michele Assunto recolha sua rede de pesca por entre os juncos de um canal em Porto Badino, Itália, ele usa uma vara para tirar o lixo do caminho. “Eles precisam limpar isso tudo”, resmunga o pescador. No ponto em que outro canal se une ao mar, aqui nesta pequena comunidade, os únicos animais capazes de sobreviver são ratos gigantes, disseram funcionários locais. É claro que o mar não é receptivo aos nadadores, nos 200 metros mais próximos de cada lado do canal, eles acrescentam, dando de ombros – ainda que banhistas ignorem o problema e estejam desfrutando do Mediterrâneo. Por Elisabeth Rosenthal, do The New York Times [In Italy, a Redesign of Nature to Clean It], tradução de Paulo Migliacci*.
Em muitas partes desse afluente na região costeira a sudeste de Roma e noroeste de Nápoles, canais que despejam efluentes de fábricas e fazendas no Mediterrâneo convivem com pescadores e banhistas. Existe pouca dúvida de que essa área precisaria de esforço considerável para que retornasse à sua condição original. Para locais que decaíram a esse ponto, porém, um novo movimento de paisagistas está recomendando uma solução radical: não restaurar o ambiente, mas reprojetá-lo.
“O desequilíbrio ecológico é tão grande que, se as coisas continuarem assim, o lugar vai morrer”, disse Alan Berger, paisagista formado pelo Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), enquanto ele escavava animadamente as margens do canal mal-cheiroso, conversando com pescadores como Assunto.
“Não se pode remover a economia local e transferir as pessoas”, ele acrescentou. “Em termos ecológicos, restauração é impossível; temos de ir adiante, estabelecer esse local em um novo caminho”.
Projetar a natureza poderia parecer uma contradição essencial ou um ato de arrogância. Mas em lugar de simplesmente recomendar que as fazendas poluentes e as fábricas sejam fechadas, Berger se especializa em criar novos ecossistemas em locais de meio ambiente pesadamente danificado: redirecionando fluxos de água, transferindo colinas, construindo ilhas e plantando espécies novas a fim de absorver a poluição, e criar novas paisagens naturais, ainda que “artificiais”, capazes de se sustentar no futuro.
Berger, fundador da P-Rex, uma empresa vinculada ao MIT, recentemente assinou um contrato com a província italiana de Latina para criar um plano ecológico mestre que será aplicado nas partes mais poluídas da região.
Ele deseja que o governo construa um alagadiço artificial de 200 hectares em um vale estratégico pelo qual passam as águas mais poluídas da região, no momento. O alagadiço serviria como estação natural de filtragem antes que as águas chegassem ao mar e às áreas residenciais.
É evidente que uma melhor regulamentação é igualmente necessária para conter o despejo de poluentes no canal. Mas uma mistura cuidadosa do tipo de certo de plantas, terra, pedras e canais de drenagem poderia filtrar a água à medida que esta passasse lentamente pela área, ele afirma. A terra também funcionaria como um novo parque.
Berger reconheceu rapidamente que a abordagem é imensamente diferente das propostas em geral defendidas por grupos ambientalistas estabelecidos como o World Wildlife Fund (WWF) ou a Nature Conservancy, que em geral tentam restaurar a terra ao seu estado natural, muitas vezes pelo fechamento ou limpeza de fontes de poluição próximas.
Na região dos Everglades, na Flórida, por exemplo, o Estado está comprando e fechando uma usina de açúcar, para preservar o meio ambiente. Mas essa abordagem pode não funcionar em locais que estejam severamente degradados, disse Berger.
“A diferença entre minhas idéias e as do WWF é que, quando contemplo esse lugar, não penso em retornar ao passado”, ele disse. “A solução precisa ser tão artificial quanto o local. Estamos tentando inventar um ecossistema em meio a uma paisagem inteiramente poluída e alterada por engenharia”.
À primeira vista, Latina não parece ser uma zona de desastre ecológico. Limitada por montanhas ao leste e pelo Mediterrâneo a oeste, a província oferece paisagens espetaculares e até mesmo algumas cidades de praia famosas, como Sabaudia.
Mas de muitas maneiras, disse Berger, se trata de uma área tão danificada e distorcida quando a região em torno de uma mina abandonada em Breckenridge, Colorado, cuja reforma ele também está projetado, como parte de um projeto de recuperação ambiental bancado pela Agência de Proteção Ambiental (EPA) dos Estados Unidos.
De fato, todo o meio ambiente aqui é artificial – e além disso apresenta um histórico de sucesso econômico.
Dois mil anos de políticas de administração de água transformaram o Pântano Pontino, que por muitos séculos foi uma região fortemente malárica, na província de Latina, uma das mais prósperas da Itália. Ela abriga parques temáticos, comunidades de férias e fazendas ¿algumas das quais fazem da Itália a maior produtora mundial de kiwis.
A prosperidade de Latina é construída sobre pântanos drenados, mantidos habitáveis por seis bombas grandes e barulhentas como aviões, instaladas em 1934 sob o governo de Mussolini. A cada dia elas extraem milhões de litros de água ¿até 36 mil litros por segundo- da terra encharcada e a transferem a um complexo sistema de canais de paredes de cimento, que a conduzem ao mar.
A província inteira voltaria a ser um pântano em sete dias caso as bombas fossem desligadas, disse Carlo Cervellin, do Consórcio do Pântano Pontino. Ele é o encarregado de manter e regular as imensas máquinas, abrigadas em uma casa de bombas no ponto mais baixo da província, na cidade de Mazzochio.
Imperadores romanos e papas tentaram por séculos drenar o pântano, com o objetivo de permitir melhor acesso ao mar ao longo da famosa Via Ápia, mas não encontraram sucesso. A drenagem do Pântano Pontino foi um dos triunfos de engenharia da era Mussolini.
A área era um pântano malárico esparsamente povoado quando Mussolini enviou operários do norte da Itália a fim de criar um projeto de obras públicas centrado nas bombas, em uma obra de porte semelhante ao Canal do Panamá. Muitos trabalhadores morreram no processo, e não foi conduzido um estudo de impacto ambiental antes que as obras começassem.
“O objetivo era retirar a água o mais rápido possível”, disse Berger. O que emergiu do pântano foi um triunfo da determinação fascista, bem como uma das regiões econômicas mais ativas da Itália. Mussolini construiu a cidade de Latina nas terras drenadas, e fez dela um centro de indústria e agricultura.
Mas próspero não quer necessariamente dizer sustentável. Berger se transferiu à Academia Americana de Roma em 2007 para um projeto de pesquisa de um ano sobre o Pântano Pontino. Foi só depois que ele começou a recolher dados sobre a terra e a água que descobriu a extensão dos danos.
Com a ajuda do governo de Latina, ele tirou milhares de fotografias aéreas e obteve dados sobre a água e a terra, em um esforço por documentar os padrões de drenagem e o fluxo da água e dos poluentes. “Se existe um lugar onde é bom saber exatamente onde sua comida foi produzida, é aqui”, ele disse. “Eu só comeria alimentos cultivados no topo das colinas”.
Água pura chega à planície de Latina das montanhas altas da área de Ninfa; a água vai se tornando mais e mais impura no caminho até o mar, recebendo eflúvios de diversas fábricas, casas e fazendas.
Berger constatou que metade da água do sistema está severamente contaminada, disse ele, com níveis de fósforo e nitrogênio que pioram à medida que correm pelos canais rumo à costa.
“Em termos de fósforo, boa parte da água tem nível de esgoto não tratado, e em termos de nitrato tem nível de efluentes suínos “como se a região toda fosse um chiqueiro”, ele diz.
Quando a água chega ao mar, em alguns dos canais, mostram as fotos aéreas de Berger, ela se tornou uma onde espessa e escura repleta de poluentes. Fábricas de produtos farmacêuticos e grandes fazendas estão localizados nas margens dos canais. Os fazendeiros também usam a água para irrigação.
Diante dessas pesquisas, até mesmo os dirigentes locais ficaram surpresos com o nível de poluição constatado, mas se impressionaram o bastante com a solução proposta por Berger para que continuassem a trabalhar com ele agora que o paisagista retornou aos Estados Unidos.
“Ele estudou nossa região de um ponto de vista diferente do nosso”, disse Carlo Perotto, diretor de planejamento da província de Latina. “Tínhamos profissionais diferentes cuidando da água, indústria e agricultura. Ele abriu novas formas de pensar”.
* No Terra Notícias, Terça, 23 de setembro de 2008, 08h56.
In Italy, a Redesign of Nature to Clean It
By ELISABETH ROSENTHAL
The New York Times, September 22, 2008
TERRACINA, Italy — Before Michele Assunto hauls in his fishing net from the banks of a reed-lined canal here, he uses a pole to push the garbage out of the way. “They really need to clean this up,” he growls.
Where another canal empties into the sea here at the small community of Porto Badino, the only animals that can survive are giant rats, local officials say. Of course, the sea is not fit for swimming for 200 yards on each side of the outlet, they add with a shrug — yet bathers splash in the Mediterranean nearby.
In many parts of this affluent coastal region southeast of Rome and northwest of Naples, canals dumping effluent into the Mediterranean from farms and factories coexist with fishermen and beachgoers. There is little doubt that this area would need considerable work to return to a more pristine state. For places as far gone as this one, however, a new breed of landscape architect is recommending a radical solution: not so much to restore the environment as to redesign it.
“It is so ecologically out of balance that if it goes on this way, it will kill itself,” said Alan Berger, a landscape architecture professor at M.I.T. who was excitedly poking around the smelly canals on a recent day and talking to fishermen like Mr. Assunto.
“You can’t remove the economy and move the people away,” he added. “Ecologically speaking, you can’t restore it; you have to go forward, to set this place on a new path.”
Designing nature might seem to be an oxymoron or an act of hubris. But instead of simply recommending that polluting farms and factories be shut, Professor Berger specializes in creating new ecosystems in severely damaged environments: redirecting water flow, moving hills, building islands and planting new species to absorb pollution, to create natural, though “artificial,” landscapes that can ultimately sustain themselves.
Professor Berger, who is the founder of P-Rex, for Project for Reclamation Excellence, at M.I.T., recently signed an agreement with Latina Province to design a master ecological plan for the most polluting part of this region.
He wants the government to buy a tract of nearly 500 acres in a strategic valley through which the most seriously polluted waters now pass. There, he intends to create a wetland that would serve as a natural cleansing station before the waters flowed on to the sea and residential areas.
Of course, better regulation is also needed, to curb the dumping of pollutants into the canal. But a careful mix of the right kinds of plants, dirt, stones and drainage channels would filter the water as it slowly passed through, he said. The land would also function as a new park.
Professor Berger was quick to acknowledge that the approach was vastly different from the kind normally advocated by established environmental groups like the World Wildlife Fund or the Nature Conservancy, which generally seek to restore land or preserve it in its natural state, often by closing down or cleaning up nearby polluters. In the Florida Everglades, for example, the state is buying and closing a sugar plant to preserve the environment. But that approach may not work in places that are already severely degraded, Professor Berger said.
“The difference between me and W.W.F. is that when I look at this place, I never think about going back,” he said, referring to the wildlife fund. “The solution has to be as artificial as the place. We are trying to invent an ecosystem in the midst of an entirely engineered, polluted landscape.”
At first glance, Latina does not look like an environmental disaster zone. Bordered by mountains to the east and the Mediterranean to the west, it is a place of spectacular rural vistas and even a few famous beach resorts, like Sabaudia.
But in many ways, Professor Berger said, it is as damaged and distorted as the area around an abandoned mine in Breckenridge, Colo., that he is also redesigning, as part of a Superfund cleanup underwritten by the Environmental Protection Agency.
Indeed, the entire environment here is a manufactured one already — and one that is successful, in economic terms at least.
Two thousand years of “water management” have turned the once-malaria-infested Pontine Marshes into a region, Latina Province, that is among Italy’s most prosperous. It is home to industrial parks, resorts filled with weekend homes, and farms — some of which make Italy the world’s leading producer of kiwis.
Latina’s prosperity is built on drained swampland, kept habitable by six pumps as huge and noisy as airplanes, put in place in 1934 by Mussolini. Each day they pull millions of gallons of water — up to 9,500 gallons a second — out of the soggy ground, directing it into an elaborate system of cement-lined canals that ultimately dump it into the sea.
The entire province would return to marshland in seven days if the pumps were turned off, Carlo Cervellin of the Pontine Marsh Consortium said. He is in charge of maintaining and regulating the immense machines, which are in a pump house at the lowest point in the province, in Mazzochio.
Roman emperors and popes had tried for centuries to drain the marshes to allow better access to the sea along the famed Appian Way, all with limited success. The draining of the Pontine Marshes was one of Mussolini’s engineering triumphs.
The area was still a sparsely inhabited malarial breeding ground when Mussolini brought in workers from Northern Italy to create a public works project centered on the pumps that in some ways rivaled the construction of the Panama Canal. Many died in the process, and there was no environmental impact study.
“The goal was to pump water out as fast as possible,” Professor Berger said.
What emerged from the swamp was a triumph of Fascist determination as well as one of Italy’s economic powerhouses. Mussolini built the city of Latina on the newly dried-out land, where it became a center of industry and farming.
But prosperous does not necessarily mean sustainable.
Professor Berger came to Rome’s American Academy in 2007 on a yearlong fellowship to study the history of the Pontine Marshes. It was only after he started to collect data on the land and the water that he realized how damaged the area was.
With the help of the local government in Latina, he collected thousands of aerial photographs as well as data from water and soil in an effort to document drainage patterns and the flow of water and pollutants.
“If there was ever a place to know exactly where your food is produced, it’s here,” he said. “I would only eat from uphill.”
Pristine water enters the Latina plain from high mountain streams in the area of Ninfa; it becomes dirtier and dirtier as it heads toward the sea, picking up the runoff from a succession of factories, farms and homes.
Professor Berger found that half of the water in the system was severely contaminated, he said, with phosphorus and nitrogen levels that get worse as it runs through the canals toward the coast.
“In terms of phosphorus, much of the water is in the raw-sewage range, and in terms of nitrates, it was in the swine effluent range — like being right downstream from a pig farm,” he said.
By the time the water reaches the sea at some outlets, Professor Berger’s aerial photos show, it has become a plume of silt filled with pollutants. Pharmaceutical factories and large farms are along the canals. Farmers also use the water for irrigation.
Presented with his research, local officials were surprised at the portrait of pollution that emerged. They were also impressed enough with the solution he proposed that they are continuing to work with him now that he is back in the United States.
“He studied the zone from a different point of view than ours,” said Carlo Perotto, the planning director for the province. “We had different people concerned with water, industry and agriculture. He opened a new way of thinking.”
[EcoDebate] 29/09/2008