Crise mundial na produção de alimentos evoca hoje o drama vivido pela Europa durante o século 14, artigo de Manolo Florentino
[Folha de S.Paulo] Os sem-marmita – Diz-se que a época moderna teve início no século 16. Os critérios utilizados variam entre a afirmação do indivíduo e a expansão do comércio, passando por invenções, outros mares e uma nova relação entre os homens e Deus. Agrada-me mais quem encontra algumas de suas mais férteis sementes 200 anos antes, regadas por uma insidiosa inflação que, como a de hoje, a todos inquietava.
O século 14 é lembrado pela peste negra de 1348. França, Inglaterra e o que viria a ser a Itália acusaram o golpe, mas outras áreas não escaparam. As enfermidades varreram o continente de 1350 a 1371.
Um caso típico foi o da futura Alemanha, que, entre 1326 e 1400, conheceu 32 anos de epidemias -a peste era cíclica.
Caro, o pão faltava nas mesas dos pobres. Na Inglaterra, após mais de cem anos de estabilidade, seu valor quintuplicou em 1315. Na França, aumentou 25 vezes em 1313 e multiplicou-se por 21 em 1316. A carestia disseminou-se por toda a Europa e perdurou por décadas.
Famintos e enfermos, os menos aquinhoados se revoltavam: no nordeste da França (1358), em Florença (1378), na Inglaterra e de novo na França (1381), em Portugal (1383) e assim por diante.
Doenças
Guerras eram também comuns, sendo a dos Cem Anos (1337-1453) apenas a mais comentada. Os conflitos que opunham povos e classes se tornaram tão reiterativos quanto as doenças e a fome.
Não surpreende que, depois de chegarem a 73 milhões em 1300, os europeus ocidentais somassem apenas 45 milhões de pessoas em 1400 (-38%).
Estimativas regionais reafirmam a tendência continental: após alcançar 5 milhões de habitantes em 1340, a Inglaterra tinha 3 milhões de indivíduos em 1470; entre esses dois anos, o número de franceses caiu de 21 milhões para 14 milhões e, o de alemães, de 14 milhões para 10 milhões.
Os níveis demográficos do século 14 somente foram retomados 200 anos depois.
O século 14 se viu preso a um ciclo perverso que teve na alta dos preços dos alimentos a sua expressão mais tangível. Óbvio, o aumento geral do valor da cesta básica da época debilitava sobretudo os mais pobres.
Mortandades, revoltas, guerras e êxodo rural eram os resultados previsíveis. Pior: exacerbavam a carestia, realimentando toda a cadeia perversa.
Quando a história econômica era levada a sério pela academia, alguns dos melhores estudiosos franceses (George Duby entre eles) não conseguiam unir todos os signos exteriores da crise -diziam apenas que o século 14 se caracterizou por uma “enorme defasagem entre produção e consumo”.
Tinham razão. Mas os italianos (Ruggiero Romano, o mais famoso) insistiam em que a defasagem encarnava a própria crise, nunca a sua explicação.
Faltava comida não por ausência de braços ou de terras.
Afinal, se os camponeses -esteio do crescimento demográfico verificado desde o ano 1000- não conseguiam produzir mais, era porque já haviam cultivado toda a terra a que tinham acesso legal.
Já os senhores não o faziam pura e simplesmente porque não queriam. Moeda sonante não era exatamente a base de seu poder e glória.
Processos sistêmicos
Foi preciso tempo e muita luta para que, na Europa do Norte, senhores e camponeses chegassem a um acordo fundado em novas relações de trabalho e de acesso à terra, liberando a produção das amarras feudais e permitindo o seu crescimento exponencial.
Na Península Ibérica, ao contrário, optou-se pela manutenção do status quo, afiançado pela montagem de impérios que logo transformariam a América, a África e a Índia na galinha dos ovos de ouro da aristocracia parasitária.
Se algo pode ser aprendido de uma crise tão distante como a do século 14, é que carestias longas -como a que hoje se anuncia- resultam de processos sistêmicos. São efeitos, nunca causas.
Por isso, de pouco adianta o Fundo Monetário Internacional (FMI) revisar para cima as previsões de inflação (para os emergentes, a perspectiva passou de 7,4% para 9,1% neste ano) se não houver clareza de que a atual crise da oferta não pode ser combatida apenas com políticas fiscais e monetárias adequadas.
Do início de 2006 a março último, o preço da tonelada métrica de trigo passou de US$ 375 para US$ 900 nos mercados de commodities. O arroz vai pelo mesmo caminho, e os tumultos causados pela falta de alimentos na África não estão sendo devidamente registrados pela imprensa.
Êxodo rural
Nada indica que a solução venha naturalmente -ao contrário, na África, o êxodo rural se acelera e, nos próximos 20 anos, 350 milhões de chineses abandonarão o campo rumo às cidades.
Noves fora a polêmica acerca do incentivo à produção de etanol -os interesses em jogo são imensos-, creio que o economista Jeffrey Sachs está sendo demonizado.
Afinal, ele acerta ao recomendar o incremento da oferta de alimentos pela via do financiamento global aos pequenos produtores dos países pobres, visando, de imediato, a incorporação de tecnologias existentes. Está igualmente correto ao postular o apoio intransitivo à pesquisa de longo prazo, visando o incremento da produtividade agrícola a baixo custo.
Alcançar esses objetivos mínimos exige o exercício pleno da política entendida como busca de consenso, só que em escala planetária.
Do contrário, continuaremos a compartilhar a desilusão algo cínica segundo a qual o desenvolvimento do capitalismo implica, necessariamente, a morte por inanição de gerações de seres humanos.
MANOLO FLORENTINO leciona história na Universidade Federal do Rio de Janeiro e escreve regularmente na seção “Autores”, do Mais!.
Artigo originalmente publicado na Folha de S.Paulo, 07/09/2008
[EcoDebate, 08/09/2008]