Debate aberto pelo STF cria cenário otimista para terras indígenas. Entrevista com Paulo Maldos, presidente do CIMI
Joênia Wapichana, do Conselho Indígena de Roraima, Paulo Santilli, da Funai, e Jocenildo Saterê, participam de audiência pública em comissão do Senado, 14/05/2008, sobre demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol. Foto: Valter Campanato/ABr
Desde abril paralisada, voltou a ser analisada pelo STF a homologação definitiva da demarcação contínua da Terra Indígena de Raposa/Serra do Sol (RR). A disputa que envolve índios que sempre habitaram a região e arrozeiros invasores é considerada um dos momentos mais importantes na história recente dos tribunais brasileiros e está cercada de histórias de medo e violência ao longo dos últimos anos, como atesta o fato de 21 lideranças indígenas já terem sido assassinadas na contenda.
Para analisar e refletir a respeito do andamento da ação de homologação no STF, o Correio da Cidadania conversou com Paulo Maldos, presidente do CIMI (Conselho Indigenista Missionário). Para ele, o resultado parcial ainda não favorece nem mesmo aos índios. Mas com as posições de representantes do governo e do ministro Carlos Ayres de Britto, o quadro é positivo em relação à demarcação em terra contínua da reserva, pois, mesmo com o pedido de vistas requerido por outro ministro, a argumentação dos rizicultores é inconsistente e já foi amplamente superada. Por Gabriel Brito, do Correio da Cidadania.
A entrevista completa pode ser conferida a seguir.
Correio da Cidadania: Como você analisa a paralisação do julgamento da homologação definitiva de Raposa/Serra do Sol e que lado se beneficia mais com o pedido de vistas do ministro Carlos Alberto Menezes de Direito?
Paulo Maldos: É comum nessas questões algum ministro do STF usar esse procedimento de pedir vistas. Surpreendeu por ser logo no início, mas é corriqueiro. Na verdade e a rigor, nenhum lado perde ou ganha. O que percebemos ontem é que o voto do Ayres de Britto foi surpreendente, pois ele não tinha sinalizado nada antes e se mostrou amplamente favorável à demarcação contínua. Seu voto revelou um trabalho intenso de leitura, pesquisa nos autos e muita fundamentação histórica e antropológica, revelando que ficou muito atento, de abril para cá, às polêmicas na imprensa.
Tanto nós como advogados dos arrozeiros ficamos surpresos. Ao que me parece, os demais ministros estavam com o voto pronto, inclusive o Menezes de Direito disse isso, mas o impacto do voto do Ayres fez com que eles sentissem necessidade de se preparar melhor. O Menezes de Direito é um ministro de corte conservador e deve ter se dado conta de todo o momento anterior, em que falaram o representante da comunidade indígena, a advogada dos índios, o Procurador Geral da República. Esse conjunto de falas criou um panorama que destruía toda a argumentação construída até hoje pelos arrozeiros e seus advogados. Eles foram extremamente pobres nesse sentido, usando argumentos já conhecidos há tempos, sem adicionar nada, com ataques generalizados aos antropólogos e acusações genéricas de ameaça à soberania.
Portanto, não sobrou nada da argumentação deles. Provavelmente a argumentação do Direito não adicionaria muito ao que tinham falado os advogados dos arrozeiros e sabia que assim já estava destruído. Dessa forma, foi melhor pedir vistas para pegar uma lupa e olhar todos os autos, a fim de descobrir outras razões ou até mesmo mudar de opinião simplesmente. Com a fala da índia, do Paulo Guimarães, do advogado da União, talvez ele tenha adquirido novos olhares, então tomara que mude também e fique a favor dos índios.
Não necessariamente esse pedido de vistas prejudica os índios, que têm argumentos sólidos e continuarão tendo. Isso, na verdade, dá mais tempo de tirar dúvidas e esclarecer ainda mais as coisas. O desafio para os arrozeiros é conseguir novos argumentos, mas eles não os possuem mais. São os mesmos daquelas 300 contestações que fizeram no governo FHC quando se deu a abertura para contestações a respeito de demarcação de terras. Essas argumentações já foram superadas e derrotadas há muito tempo na verdade. Ocorre que eles usam os mecanismos jurídicos ao máximo para se manterem na terra e verem se invadem mais, como fazem a cada ano.
O que eles entendem por propriedade não é ter algum título, mas sim fincar estacas e contratar pistolagem. Para eles, isso é propriedade.
E para completar, o Quartiero já avisou que tem mais de 8 mil estacas guardadas, apenas esperando a oportunidade de colocá-las e ampliar a invasão. Ele se sente impune, já que é apoiado por governo, políticos e a mídia de Roraima e nacional. Para ele, não existem instituições, não há limite algum, tanto que já deu até declarações ao Valor Econômico dizendo que não aceitará ser “roubado” pelo STF. Até pelo ponto de vista das instituições burguesas me surpreende essa conduta, pois ele não respeita nenhuma instituição e se comporta como um animal solto e enfurecido; não sei como suportam tal comportamento.
Infelizmente, o Estado brasileiro tem dado a ele um status que não dá a ninguém. É um cara que já colocou mina em estrada para matar policial federal, o filho já jogou bomba na PF, fez algo até inédito, que foi colocar na frente da reserva uma mulher-bomba (que inclusive é candidata a vice dele na sua cidade), já usou carro-bomba… Em tempos passados, um cara assim no mínimo estaria preso e no hospício. Porém, está aí, dando declarações à imprensa. É um assassino potencial permanente, funciona na base da autocombustão. Disse na sessão que se surpreende por não ter sido retirado de lá e fuzilado. Quem diz isso vive num mundo imaginário, de guerra imaginária. Pelo menos agora tem companhia, como o Fregapani. Eles se comparam à Geórgia, Curdistão…
CC: Portanto, os índios e aqueles que os defendem na questão podem ficar mais otimistas depois do que se viu até agora no julgamento do caso?
PM: Sim, porque não tínhamos uma avaliação dos votos dos ministros, que são muito discretos, como devem ser, aliás. O governador de Roraima deu uma entrevista à Mônica Bergamo no Mineirão dizendo que sabia que a votação seria 7 x 4 e que inclusive o FHC teria participado do acordo. Achamos muito improvável, mas em outras entrevistas ele reafirmou que já estava tudo certo. Depois o Jobim também afirmaria o mesmo.
Enfim, eram notícias e mais notícias plantadas dando conta de que os arrozeiros ficariam e que um novo desenho da reserva era inevitável. Não acreditávamos tanto e até nos perguntávamos de onde vinha tanta segurança. Nessa fase final ficou todo mundo quieto, os arrozeiros não falaram mais nada, militares também não; só ouvíamos isso, o que nos deu certa preocupação.
Portanto, o voto do relator ter sido tão profundamente favorável aos índios foi uma ótima surpresa, deu muito alento de que outros ministros o sigam. Existe um campo fértil de argumentação a favor dos índios e há uma receptividade por parte dos ministros, na linha de que a Constituição respalda os direitos originários, que eles contribuem para a sociedade. Os procedimentos técnicos foram conduzidos de forma correta, a questão da soberania é uma invenção, enfim, toda essa argumentação tem receptividade no STF, o que nos deu uma esperança enorme. Rompeu-se aquela situação estéril para que viessem à luz argumentos de guarida no STF.
A sociedade brasileira estava muito desinformada meses atrás e foi aterrorizada com os argumentos dos arrozeiros. Ela estava despreparada para compreender a situação, mas nos últimos meses o debate aumentou, entraram argumentos qualificados de gente como Dalmo Dallari, Marina Silva, Boaventura de Sousa Santos, muitos argumentos de peso, fora outros que vieram sendo debatidos ao longo desses meses.
CC: Você teme por um clima de guerra na reserva entre os arrozeiros e os indígenas até a definição do caso?
PM: O que pode acontecer é os arrozeiros, no desespero de quem vai perder, provocarem as comunidades a fim de arrancar algum conflito e daí acusarem os índios de violentos, dentre outras coisas.
Porém, os índios estão muito bem preparados e orientados a não aceitarem provocações. Ontem mesmo, depois do pedido de vistas, na Vila Surumu, na Raposa, onde de um lado da rua ficam as comunidades e do outro os jagunços, estes passaram a comemorar e a se embriagar como se fosse uma vitória. Os índios, que não tinham TV, não entendiam nada. E a noite inteira foi assim, os jagunços partindo para cima e provocando as comunidades. É algo muito perverso; a mentira permanente, arrogância, prepotência. É assim que eles tentam arrancar alguma coisa da comunidade, para depois acusá-la de agressora.
Para dar um exemplo, em maio havia gente trabalhando em paz na reserva e chegaram motociclistas soltando bombas. Eles falaram que foram os índios que os agrediram, sendo que o governador de Roraima ainda teve a capacidade de chamar os índios de terroristas. Quer dizer, o pessoal está lá construindo uma maloca, chega um grupo armado, joga bomba, atira, quase mata 10 pessoas e quem sofre tudo isso é terrorista.
CC: E vai ficar muito complicada essa pressão sobre os indígenas de parte dos políticos de Roraima, que são amplamente favoráveis aos arrozeiros?
PM: Complicado sempre foi. Só que agora eles estão perdendo força, perdendo justamente a capacidade de pressão, como está sendo demonstrado no STF e como se nota pela ausência de apoio explícito. Estão perdendo o gás.
Eles provocaram uma onda forte em abril, que se tivesse sido concluída naquela mesma época muito provavelmente teria resultado negativo para os índios. Aquela onda poderosa – com editoriais da Rede Globo, Clube Militar se pronunciando, General Heleno indo para a TV – poderia provocar um julgamento altamente negativo.
Acontece que outra onda veio de baixo, das universidades, de juristas, movimentos sociais, Via Campesina, sociedade brasileira e até parte da própria mídia, inclusive de Roraima. Quando estive lá, lia cartas de leitores de boa fé que saíram da reserva de Raposa e que estavam indignadas com a resistência armada dos não-índios Ou seja, pessoas de Roraima, que moravam dentro da área indígena, concordavam em sair e achavam que os outros deveriam fazer o mesmo, indignadas com esse comportamento. Portanto, agora é a hora da onda dos índios, e creio que será a vencedora.
CC: Você acredita que o STF finalizará o processo neste ano?
PM: Acho que sim, pois eles têm consciência de que há uma grande expectativa em torno deste processo. O Gilmar Mendes já pediu ao Direito que seja rápido no estudo dele quanto ao pedido de vistas. Ele não disse para quando exatamente, mas que neste semestre vão debater e encerrar o assunto.