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Artigo

O Plano de Aceleração do Comprometimento com as empreiteiras: o caso do Complexo Hidrelétrico do Rio Madeira (RO) e as razões do apelo ao Tribunal Internacional de Justiça Ambiental, artigo de Rodrigo Siqueira Ferreira

O Governo Federal mantém seu cronograma oficial orientado para a ampliação da oferta de energia elétrica do país, em curto prazo, conferindo a roupagem legal do interesse público e do caráter estratégico a empreendimentos que geram oposição popular representativa. É o caso do Complexo Hidrelétrico do Rio Madeira (RO), obras prioritárias do Plano de Aceleração do Crescimento – PAC –, caracterizadas como projetos de geração de energia elétrica com prioridade de licitação e implantação. Transcorridos muitos protestos da sociedade civil organizada e ações jurídicas frente a diversas instâncias competentes pelo processo de licenciamento ambiental das UHEs de Santo Antônio e Jirau, tornou-se evidente a resolução irredutível do poder político de consolidar seu projeto de governo – mas não de Estado. O processo de tomada de decisão foi vertical, desrespeitando o princípio da participação social e a legislação ambiental vigente.

Não concordando, em absoluto, com o crescimento a qualquer custo (social, ecológico, etnoambiental) imposto forçosamente pelo PAC, resolvemos apelar a uma corte internacional independente, em virtude da iminência da violação de direitos constitucionais de povos indígenas isolados. Estamos apoiados pelo princípio da precaução, marco inovador introduzido no Direito Ambiental Internacional após a ECO-92. Não existe certeza científica sobre as espécies de danos que podem ser causados pelas hidrelétricas, como é de praxe, os estudos dos empreendedores carecem de qualidade e confiabilidade (por exemplo, a metodologia adotada no EIA/RIMA para definir a série de vazões médias do rio Madeira utilizava dados de outra bacia). Ainda assim, é possível assegurar: acontecerão danos de grande magnitude, em âmbito regional e transfronteiriço. Outro ponto, a questão internacional não foi devidamente considerada. O Brasil não notificou os demais países ribeirinhos, ignorando a praxe da gestão integrada de bacias de drenagem internacional.

Os principais tributários do rio Madeira – que tem suas nascentes nas Cordilheiras dos Andes e é o maior contribuinte do rio Amazonas – são cursos d’água provenientes da Bolívia e do Peru. Segundo dados colhidos nos autos do processo de Declaração de Reserva de Disponibilidade Hídrica junto à ANA, considerando os afluentes que drenam as águas para o rio Madeira, 66% estão situados na Bolívia e 25% no Peru, à montante da bacia. É um grande equívoco conceder a licença de instalação dessas UHEs, localizadas em território de fronteira, sem antes consultar o Conselho de Defesa Nacional e/ou traçar regimes internacionais com os demais países da sub-bacia do rio Madeira. O Ministério das Relações Exteriores está expondo o país a uma situação capaz de gerar uma crise regional. A República da Bolívia manifestou-se contrariamente ao projeto, protestando nas ocasiões de concessão das Licenças Prévia (UHEs Santo Antônio e Jirau) e de Instalação (UHE Santo Antônio) – recentemente.

Quanto aos impactos regionais, os estudos subestimaram as populações passíveis de perceberem os danos. Centenas de famílias serão removidas, alterando a dinâmica cultural de povos tradicionais, indígenas, ribeirinhos, pescadores artesanais, seringueiros etc. A situação de alguns grupos indígenas não contatados é a mais grave. Segundo a Coordenação Geral de Índios Isolados (CGII/FUNAI), existem grupos indígenas isolados nas áreas de influência direta e indireta do reservatório da UHE Santo Antônio, cuja Terra Indígena – TI – ainda não foi demarcada. Embora a FUNAI tenha interditado a área para estudos (de 2007 a 2010), via portaria da presidência, sequer foi constituída a Frente de Proteção Etno-Ambiental competente para realizar ações de campo – mapeamentos com a localização geográfica dos indígenas e a definição dos limites territoriais físicos abrangidos por eles. 

Considerando a concessão da Licença de Instalação da UHE de Santo Antônio (no último dia 11 de agosto), antes da conclusão desse minucioso trabalho, todos indícios apontam que os resultados decorrentes do início das obras serão danos a territórios tradicionalmente ocupados, cujos direitos indígenas constitucionais são imprescritíveis e independem da demarcação oficial da TI. O capítulo VIII da Constituição Federal de 1988 define os direitos indígenas (artigo 231 e parágrafos), estritamente relacionados aos vínculos ancestrais com a terra. O texto constitucional determina que os territórios indígenas tradicionalmente ocupados são inalienáveis e indisponíveis; a  sua posse é permanente e o usufruto das riquezas naturais é exclusivo dos índios. Considerando que são grupos isolados, não contatados pela FUNAI – seguindo a política da CGII –, sequer podem tomar conhecimento da ameaça que os espreita. Dessa maneira, a decisão de ultimar a hidrelétrica cerceia os direitos daqueles que sequer detém capacidade para ser protagonistas do processo, sendo tal fato um verdadeiro atentado contra os princípios basilares do Estado Democrático de Direito.

As Audiências Públicas do Tribunal Latinoamericano da Água (de 8 a 12 de setembro, cidade de Antigua – programação disponível no link: http://www.tragua.com/es/index.php?option=com_content&task=view&id=142&Itemid=24) tem viés etno e julgará casos do México, Guatemala, El Salvador, Panamá e Brasil – que tenham como implicações danos hídricos ameaçando populações indígenas. Estou confiante de que vamos obter êxito na pretensão de direito a ser defendida no caso do rio Madeira. Os jurados do Tribunal Latino-Americano da Água (TLA) terão autonomia para decidir se procede ou não a denúncia sobre a violação dos direitos indígenas, sem prejuízo de considerar no mérito da causa objetos indissociáveis referentes à questão dos representativos impactos sócio-ambientais regionais e transfronteiriços, e, sobre a ausência da negociação de regimes internacionais com os países ribeirinhos.

Caso os jurados decidam favoravelmente, serão indicados – entre outros – a suspensão da Licença de Instalação da UHE e a reabertura das instâncias participativas para que as considerações soberanas dos cidadãos brasileiros sejam realmente traduzidas nas decisões políticas referentes ao complexo hidrelétrico do rio Madeira. Assim, a sociedade civil organizada (mobilizada em ampla coalizão nacional contra as hidrelétricas) disporá de um acórdão autônomo prolatado por um Tribunal Internacional Ético, resultando em um novo fato político favorável aos seus propósitos combativos. Esse documento será instrumento hábil para reforçar a legalidade de nossas reivindicações, que não foram consideradas pelas instâncias competentes envolvidas no processo de licenciamento.

Vale ressaltar, que embora o TLA seja uma instância de justiça ambiental independente – desprovida de jurisdição Estatal, cujas decisões não têm poder coercitivo –, pauta seus veredictos pela ética, valor que está no cerne do debate contemporâneo para reverter o sombrio cenário global de crise – representado fielmente pelo colapso ambiental. Filosoficamente, constitui vanguarda na re-significação do direito voltada ao resgate dos fins do Estado Democrático e da ampliação dos mecanismos de democracia participativa. Ademais, em termos pragmáticos, sabemos que, na atual conjuntura política do século XXI, nenhum governo nacional deseja transparecer para a comunidade internacional transgressão aos ditames do desenvolvimento sustentável. Principalmente tratando-se da Amazônia.

A União Federal foi citada para contestar o caso e estamos convictos que não serão violados os ditames do acórdão, sejam quais forem. Lutaremos por nossa tese, a fim de obter um imperativo moral que oriente o Governo Federal a desacelerar o PAC. Mega projetos como os que estão em andamento, têm que democratizar os mecanismos de tomada de decisão, recordando que esses são assuntos de soberania nacional e não podem ser encarados como políticas de governo mas, sim, de Estado – deve ser orientado pelo poder que emana do povo. Os direitos dos povos indígenas contatados e não contatados, das populações ribeirinhas de pescadores, dos seringueiros e de pequenos agricultores precisam ser considerados como prioritários ao invés de favorecer consórcios de mega empreiteiras e bancos internacionais interessados em lucrar cifras vultosas com a construção das barragens que alagarão centenas de quilômetros quadrados da maior floresta tropical do mundo, impactando a biodiversidade, o meio ambiente natural e urbano, além de milhares de almas humanas.

Depois da concessão da Licença de Instalação pelo IBAMA, contrariando parecer da própria equipe técnica do órgão ambiental, acreditamos que só através de uma repercussão internacional nossa voz poderá ser ouvida. De acordo com os termos da petição apresentada ao TLA, esperamos que a União Federal, através da Advocacia Geral da União e a IIRSA (Iniciativa para a Integração da Infra Estrutura da América do Sul), representada pelo Diretor do Comitê Executivo, compareçam à audiência pública de julgamento a ser realizada no dia 11 de setembro, na cidade de Antigua, para responder pelos seus atos perante a corte internacional ética e prestar os esclarecimentos à sociedade sobre as denúncias levantadas por diversas Instituições e movimentos sociais do Brasil e da Bolívia.

Esse caso será emblemático e seu desfecho representará decisão histórica para o futuro do Brasil (assim como o julgamento de Raposa Serra do Sol pelo STF): ou serão respeitados os valores da diversidade cultural étnica dos povos indígenas e a verdadeira vocação ecológica do bioma amazônico, ou, restará evidente que o modelo de desenvolvimento adotado pelo país obedece ao incoerente padrão linear do poderio econômico descompromissado com os direitos coletivos – representado pelas devastadoras monoculturas do agronegócio e obras impactantes das empreiteiras. Contamos com a adesão de toda a sociedade civil – a denúncia pode ser ratificada através de petição on-line (http://www.petitiononline.com/mayas/petition.html) que será apresentada aos jurados do tribunal internacional – e solicitamos que ajudem a divulgar o caso. Após o julgamento, o Governo Federal irá enfrentar uma oposição da qual ainda não tem dimensão. Haverá grande repercussão nacional e internacional, com desdobramento políticos de grande envergadura.

Após o julgamento do caso pelo TLA, nossa expectativa é que seja reaberto o debate em âmbito nacional. Na esfera internacional, temos laços com a coalizão social, formada no norte da Bolívia, que aguarda o acórdão para pressionar o governo Evo Morales a agir de forma mais incisiva. As decisões do Tribunal são fortemente veiculadas junto a instituições financiadoras multilaterais, podendo resultar em óbices para os empreendedores. Sabemos que estamos enfrentando fortes lobbies e interesses econômicos bilionários, mas, pela ética, decidimos ir até o fim.

Rodrigo Siqueira Ferreira, defensor dos rios livres e das culturas tradicionais, é bacharel em direito e especialista em direito ambiental / internacional de águas; será um dos representantes brasileiro no julgamento do caso “Construcción de Megaembalses sobre el rio Madeira, Brasil” pelo TLA, funcionando como assistente jurídico da Associação de Defesa Etnoambiental Kanindé – OSCIP com sede em Porto Velho, Rondônia.

CARTA ABERTA À SOCIEDADE CIVIL ORGANIZADA

JULGAMENTO POR INSTÂNCIA INTERNACIONAL DE JUSTIÇA AMBIENTAL DA DENÚNCIA DE VIOLAÇÃO DE DIREITOS INDÍGENAS CONSTITUCIONAIS PELO PROJETO DO COMPLEXO ENERGÉTICO DO RIO MADEIRA (RO)

Em maio de 2008, a Associação Kanindé de Defesa Etnoambiental apresentou ao Tribunal Latinoamericano da Água (TLA) denúncia contra a União Federal, em virtude da ameaça de danos irreparáveis à integridade física e territorial de índios e grupos indígenas isolados, representada por dois grandes empreendimentos hidrelétricos projetados para o rio Madeira, no estado de Rondônia/RO. As UHEs de Santo Antônio e Jirau fazem parte do pacote de obras de infra-estrutura denominado como PAC (Plano de Aceleração do Crescimento), lançado no ano de 2007, o qual traduz a política do Governo Federal de desenvolvimento a qualquer custo – social e ecológico.

No último dia 11 de agosto, o IBAMA liberou a Licença de Instalação da UHE Santo Antônio, ignorando parecer contrário emitido pela equipe técnica do órgão que considerou insipiente o Projeto Ambiental Básico apresentado pelos empreendedores. Agora, tornou-se iminente a violação dos direitos indígenas constitucionais em decorrência do risco de danos a povos isolados cujo processo de demarcação da Terrra Indígena não foi iniciado – a FUNAI sequer constituiu a Frente de Proteção Etno-Ambiental da Coordenação Geral de Índios Isolados/FUNAI. 

As vias e mecanismos – consultivos e deliberativos – disponíveis para a pretensa participação da sociedade civil organizada foram esgotados em diferentes instâncias. Ocorreu ampla coalizão, representativa de diversos segmentos e atores, opondo considerações e pareceres técnicos contrários junto ao CONAMA. No entanto, nenhuma medida eficaz foi adotada em âmbito nacional, fator que motivou a denúncia internacional do caso e resultou em seu acolhimento pelo TLA (www.tragua.com).

Em agosto, foi publicado o rol de julgamento da Audiência Pública que será realizada na cidade de Antigua, Guatemala, de 8 a 12 de setembro, com a inclusão do caso brasileiro na audiência do dia 11 (programação disponível em: http://www.tragua.com/archivos-tla/audiencia-2008-guatemala/programa-mano-audiencia-pag-web.jpg). O Tribunal Latinoamericano da Água é uma instância internacional de justiça ambiental, autônoma e independente, sediado na cidade de San José, Costa Rica. Foi criado no ano de 1998, com o objetivo de dar voz aos representantes de comunidades tradicionais e organizações sociais da América Latina envolvidos diretamente em conflitos hídricos.

Enquanto Tribunal ético (portanto não se confunde com os modelos falidos de jurisdição estatal coercitiva), reformula o sentido de direito ao criar instâncias alternativas para solucionar conflitos em esforço conjunto com os cidadãos ameaçados e/ou atingidos pelos danos à natureza denunciados. Sua atuação é pautada pelos princípios de convivência com a natureza, respeito pela dignidade humana e solidariedade entre pessoas e Instituições para a proteção das bacias hidrográficas da América Latina.

Aderindo ao escopo da proposta de solidariedade combativa, a Kanindé convida todas as pessoas e entidades integrantes da rede nacional mobilizada contra o Complexo Hidrelétrico do rio Madeira a somarem sua adesão ao pleito, o qual caberá a nossa equipe a honra de defender na Guatemala.

Clamamos a todas e todos pela assinatura da petição on-line (disponível em: http://www.PetitionOnline.com/mayas/petition.html) que demonstrará ao corpo de jurados do TLA a dimensão da resistência pró-ativa, em pleno enfrentamento, contra as incoerências desse projeto idealizado no âmbito da IIRSA – também citada a responder como ré. A petição integral está disponível em anexo, para aqueles que queiram conhecer os fundamentos de fato e de direito da demanda.  

Também nos dispomos a anexar documentos relevantes ao dossiê de provas em fase de elaboração final e, ainda, a expor o trabalho das Instituições que compilaram publicações sobre o assunto e tenham interesse em divulgar seus livros nos espaços de interação promovidos nos intervalos das audiências de viés etno – com a participação de povos indígenas de países como México, Guatemala, El Salvador e Panamá.

A equipe de defensores é formada por: Luis Carlos Maretto, sócio fundador da Associação de Defesa Etno Ambiental – Kanindé (1992), é especialista em Análise Ambiental na Amazônia, Engenheiro Florestal, consultor ambiental, trabalha com povos indígenas desde 1991; e Rodrigo Siqueira Ferreira, assistente jurídico da lide, é especialista em direito ambiental e direito internacional de águas, ativista jurídico em prol dos rios livres e das culturas tradicionais, foi o autor do único caso brasileiro julgado pelo TLA – em março de 2006, na cidade do México.

Esse trabalho foi desenvolvido de forma cooperativa e voluntariosa, contando com a construção participativa de importantes colaboradores. Até o presente momento, os defensores estão custeando sua viajem com recursos particulares, razão pela qual chamamos as Instituições interessadas em tornar viável a ida de nossos representantes à Guatemala a contribuirem com os recursos que tenham disponíveis, assim como, intervirem junto à possíveis apoiadores e financiadores.

Podemos ser contactados pelos seguintes endereços virtuais e telefones:
em Porto Velho
(RO): ivaneide@kaninde.org.br, maretto@kaninde.org.br e (69) 32292826;  em Brasília: rodrigo@ida.org.br e (61) 3226-5356 ou (61) 8438-3305.

Grata desde já,
Ivaneide Bandeira Cardozo
Coordenadora Geral da Kanindé
Rondônia, 25 de agosto de 2008.
 
[EcoDebate, 02/09/2008]