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Para ser cidadão, é preciso simplesmente consumir


Um mundo sem ideais. Uma vida política desértica. Sexo e prazer banalizados. A visão do psicanalista Charles Melman sobre nossa sociedade e seu futuro não é nada animadora. Por trás das críticas que o francês – um dos principais colaboradores de Jacques Lacan – faz ao mundo atual está o avanço desenfreado do consumo, essencial para o bom funcionamento da engrenagem que move o sistema capitalista.

A reportagem é Raquel Salgado e publicada pelo jornal Valor, 29-08-2008.

“Hoje, uma em cada quatro crianças chinesas é obesa. Isso é uma boa notícia para o capitalismo. Afinal, significa que suas mães compram mais e mais comida”, observa Melman, que preside a Associação Lacaniana Internacional e foi diretor de ensino da Escola Freudiana de Paris, presidida por Lacan, e de sua revista, a Scilicet.

O consumo, por sua vez, virou a palavra de ordem da sociedade e contribuiu para a implosão dos ideais e para a banalização do prazer. É o desejo pelo novo modelo de tocador de MP3, de computador ou celular que baliza as relações sociais das novas gerações. “Seus ídolos não são militantes ou líderes políticos. Eles admiram Bill Gates”, disse Melman ao Valor enquanto bebia goles d’água em um mais um dia de intenso calor na capital baiana. Ele veio ao Brasil para ser um dos palestrantes do ciclo de conferências “Fronteiras do Pensamento”, promovido pela Braskem.

A perda do interesse pela política e, conseqüentemente, a dissolução de ideais, parece, na visão do psicanalista, estar ligada às provocações da sociedade de consumo, que “encoraja todas as satisfações, sem que as pessoas estejam preocupadas com os efeitos que essa busca incessante por prazer pode trazer para si e para os outros”. O consumo, em princípio, não é algo ruim. O problema é que entrou nas zonas de abuso, de inutilidade e destruição.

Para Melman, o consumismo permite que o homem seja mais livre, mas a um preço extremamente alto. “As pessoas são de fato muito mais livres porque, na maioria das vezes, não carregam nenhuma referência moral. Ao mesmo tempo, tornam-se escravas dos objetos destinados à sua satisfação. Somos todos escravos desses objetos”, adverte.

Nem o sexo escapa da roda do consumo. É mais uma mercadoria, deixou de ser sagrado, de ter relação com o desejo e o amor. O sexo é mais uma atividade, como ir à academia, fazer compras ou buscar os filhos no colégio. Sua dessacralização é acompanhada pela exposição exarcebada do corpo humano. Isso acontece não só no dia-a-dia das pessoas, mas também na arte contemporânea. Para Melman, “os objetos são expostos de maneira bruta. Cada um de nós tenta realizar um ideal de beleza, mas somos convidados a renunciar a isso e a nos apresentar de forma crua, sem representações.”

Para ser cidadão, é preciso simplesmente consumir. Preocupa o fato de que os jovens estão satisfeitos com a festa permanente propiciada por essa nova cidadania. “É a primeira vez que o desejo do jovem não ocorre em oposição ao que prega a organização social”, ressalta Melman. Mesmo ele tendo a possibilidade de realizar boa parte do que deseja, há limites para isso. Não que a sociedade os imponha. “É o jovem que não sabe mais como ultrapassá-los”, na avaliação do psicanalista francês. As novas formas de satisfação passam pela anestesia do corpo: drogas, álcool e, até mesmo, relações virtuais.

Melman dá o exemplo de uma adolescente que bebe todo dia em bares, discotecas e festas de amigos. Quando se cansa de só beber, passa a usar drogas. “Chega um ponto em que ela não sabe como ir além, como ter novas formas de prazer, e isso gera uma insatisfação grande, muito grande”, explica. É a partir daí que muitos decidem procurar ajuda especializada e chegam a seu consultório. Não se pense, no entanto, que as pessoas chegam lá querendo encontrar a felicidade em outras coisas prazerosas ou aprender a ser felizes com o que têm, com o que são. “O que querem é descobrir uma forma de ir além.”

Esses anseios e angústias passam a permear todos os tipos de relacionamento, especialmente os amorosos. Como cada um espera uma satisfação integral e uma relação sem defeitos, a frustração acaba sendo inevitável. “As pessoas sentem-se enganadas, pois não obtiveram o que acham que lhes era devido. Muitas vezes, a violência surge nesse momento, como forma desesperada de tirar do parceiro aquilo que ele não quis ou não foi capaz de oferecer. Aonde tudo isso irá nos levar? “Infelizmente, não tenho as capacidades de um profeta”, responde Melman, sorrindo.

(www.ecodebate.com.br) publicado pelo IHU On-line, 29/08/2008 [IHU On-line é publicado pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, em São Leopoldo, RS.]

[EcoDebate, 01/09/2008]