Na contramão da história: Condições degradantes, como a escravidão, ainda envergonham o País
Imagem/Gráfico do Jornal de Brasília.
Números do Ministério Público do Trabalho mostram o lado atrasado na economia de um Brasil que luta para se inserir no mundo globalizado. Trabalho escravo e infantil, condições degradantes de atividades no campo e nas cidades e empregos sem carteira assinada são algumas das aberrações trabalhistas verificadas em todo o País. Essa realidade é também negativa para o Brasil diante do contexto mundial em que organismos internacionais e Organizações não-Governamentais (ONGs) se articulam para levantar barreiras contra produtos gerados a partir da exploração humana e da degradação do meio ambiente. Por Wanderley Araújo, do Jornal de Brasília, 31/08/2008.
Nos últimos 15 anos, desde que o Ministério Público ganhou independência, cerca de 29 mil trabalhadores foram libertados de situações de trabalho análogas à escravidão graças a ações movidas por procuradores e fiscais do trabalho. Apenas nos últimos quatro anos, 7.319 lavradores foram resgatados em regiões isoladas, de difícil acesso, localizadas principalmente em Mato Grosso, Pará, Maranhão, Tocantins, Mato Grosso do Sul, Goiás, Bahia, Rondônia e Piauí. A escravização no trabalho foi diagnosticada também, em menor escala, no Ceará, Santa Catarina, Rio Grande do Sul, Rio Grande do Norte, Minas Gerais, Paraná, Acre e Amazonas. No ano passado, as ações das autoridades na fiscalização do ambiente do trabalho beneficiaram 31.778 trabalhadores. Desse total, 5.963 foram encontrados em condições de escravidão, enquanto 3.627 foram contratados sem carteira assinada. As multas aplicadas nessas ações alcançaram a cifra de R$ 9,8 milhões.
“Os países ricos não estão preocupados com as condições de trabalho no terceiro-mundo, e querem tirar proveito da situação” Jonas Ratier, coordenador de ações anti-trabalho escravo
No rastro do desrespeito aos direitos dos trabalhadores, a expansão das exportações brasileiras corre risco de ser afetada, principalmente a commodity do etanol, conforme adverte o procurador do Trabalho Jonas Ratier Moreno, coordenador nacional das ações de combate ao trabalho escravo. Ele denuncia que continuam os focos de atividades braçais análogas à escravidão no País, sobretudo nas regiões mais atrasadas.
Um dos exemplos é o estado de Alagoas, onde, este ano, numa primeira etapa de uma força-tarefa realizada para combater o trabalho escravo, foram vistoriadas 15 usinas de álcool. E todas apresentaram problemas relacionados a trabalhadores expostos a situações compatíveis com escravidão, e por isso tiveram de ser multadas e autuadas. “Em setembro retornaremos a Alagoas para verificar a situação em outras 11 usinas e checar se nas 15 já autuadas foram obedecidos os termos de conduta nos quais os usineiros se comprometeram a erradicar as situações análogas à escravidão”, afirma Ratier.
O procurador cita também escândalos ocorridos ano passado em Mato Grosso do Sul, onde duas usinas foram multadas por impor condições de trabalho escravo a 1.700 trabalhadores, a maioria indígenas. O episódio repercutiu na mídia internacional. Uma das usinas multadas, a Companhia Brasileira de Açúcar e Álcool (CBAA), pertencente ao empresário José Pessoa de Queiroz, um dos principais articuladores do setor alcooleiro junto ao governo Lula e ao Congresso Nacional.
Jonas Ratier faz uma leitura da conjuntura econômica globalizada e diz que “o empresariado nacional está sendo convocado pelo mundo a adotar um comportamento ético nas relações de trabalho”. Jonas lembra que a tentativa recente dos EUA de impor barreira ao aço brasileiro, devido à condição de semi-escravidão nas carvoarias, é um exemplo concreto de que o desrespeito aos trabalhadores acaba servindo de munição para os discursos dos concorrentes que fazem de tudo para bloquear a entrada de produtos brasileiros na Ásia, EUA e Europa.
Novo texto ampara fiscais
Ratier conta que recebeu a visita de um emissário da Comunidade Econômica Européia, que alegou estar “sensibilizado” com as reportagens sobre as condições de trabalho nos canaviais brasileiros. “É claro que ele não estava sensibilizado com nada. Alguém o mandou ao Brasil para colher mais informações e ajudar a construir lá fora um discurso contra o nosso etanol”, observa.
Jonas Ratier afirma que durante décadas o artigo 149 do Código Penal, que prevê punição contra o trabalho escravo, não especificava o que caracteriza esse tipo de crime. Por isso, os fazendeiros ficavam praticamente impunes. Com uma nova redação, de dezembro de 2003, os procuradores e fiscais do trabalho se ampararam na lei para aplicar sanções contra os criminosos.
O novo texto é claro ao definir as condições de trabalho análogas à escravidão, que ocorrem quando “a vítima for sub-metida a trabalhos forçados ou à jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto”. Incorre nas mesmas penas quem cercear o uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho; mantiver vigilância ostensiva no local de trabalho ou se apoderar de documentos ou objetos pessoais do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho.
A Lei 10803/2003 ainda prevê aumento da pena pela metade, quando o delito for cometido contra criança ou adolescente ou por motivo de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou origem. Antes da nova redação, a pena prevista era de dois a oito anos de reclusão. Agora, foi ampliada a sanção, para manter os mesmos patamares de pena privativa de liberdade, porém com a inclusão da pena correspondente à violência sofrida pela vítima do trabalho escravo.
Crimes contra crianças
A submissão de crianças e adolescentes ao trabalho é outra ilegalidade que vem sendo combatida pelo Ministério Público. De acordo com o procurador Antônio de Oliveira Lima, vice-coordenador das ações nacionais de combate ao trabalho infantil, 6,8% das crianças e adolescentes brasileiros – cerca de três milhões de pessoas – estão exercendo ilegalmente atividades laborais nas zonas rural e urbana. Um detalhe assustador é que 4,5% desse universo é composto de crianças entre cinco e 13 anos. Apesar de esses números causarem espanto, o procurador afirma que a situação já foi mais dramática ainda, pois em 1992 o percentural de crianças e de adolescentes no mercado de trabalho era de 14%.
Antônio Lima diz que as principais dificuldades para zerar o índice de menores em atividades laborais são as barreiras culturais, financeiras e educacionais. Há uma cultura no País que faz muitos adultos
acreditarem que o trabalho infantil é um meio digno de a sociedade ajudar no sustento das famílias pobres. Por outro lado, o estado de miserabilidade financeira de muitas famílias empurra crianças e adolescentes para formas degradantes de trabalho. Por fim, há as deficiências do sistema de ensino.
De acordo com o Ministério Público do Trabalho, os alicia-dores de menores se enquadram nos artigos 434 da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) e 136 do Código Penal. O primeiro prevê desrespeito à Seção IV da lei, que proíbe o trabalho de menores de 16 anos. A multa é um salário mínimo por criança empregada. No Código Penal, o artigo 136 trata de expor a perigo a vida ou a saúde de pessoas sob a autoridade de alguém, sujeitando-a a trabalho excessivo ou inadequado. A pena é de prisão de dois meses a um ano ou multa, que pode ser aumentada em um terço se a vítima tiver menos de 14 anos.