A fome hoje está maquiada Entrevista com Ricardo Paes de Barros, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea)
Autor de estudos sobre pobreza, o economista Ricardo Paes de Barros afirma que as redes de solidariedade no Brasil mascaram a relação entre a falta de dinheiro e a insegurança alimentar e que a inflação dos alimentos tende a afetar mais o pobre urbano
Sempre que pode, o economista Ricardo Paes de Barros – conhecido como PB – foge dos holofotes.
A exceção é aberta quando a discussão é sobre pobreza e fome. Da sua sala, no Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), já saiu mais de uma centena de estudos sobre esses temas. Com anos de pesquisa sobre o assunto, PB concluiu que nem sempre a pobreza absoluta leva à fome. No Brasil, por exemplo, redes de solidariedade são acionadas e acabam mascarando a relação entre falta de dinheiro e insegurança alimentar. De volta ao Rio, após passar os primeiros meses de 2008 nos EUA, como professor convidado na Universidade de Chicago, ele falou ao GLOBO sobre a fome no Brasil do século XXI. Por Liana Melo, do O Globo, 27/08/2008.
GLOBO: O senhor considera que insuficiência de renda leva necessariamente à fome?
RICARDO PAES DE BARROS: Existe uma diferença entre insuficiência de renda e segurança alimentar, fome ou subnutrição. Não é à toa que o grau de subnutrição no Brasil é bem inferior ao de crianças extremamente pobres. É consenso que a extrema pobreza hoje no país gira em torno de dois dígitos, enquanto o percentual de desnutridos é de só um dígito. Se as duas variáveis andassem sempre juntas, toda pessoa extremamente pobre passaria fome.
Se a extrema pobreza não leva à fome, o que de fato leva?
PAES DE BARROS: A principal explicação é que há mais solidariedade em termos de alimentos do que renda.
Pode explicar melhor isso?
PAES DE BARROS: É muito difícil ver um parente ou um vizinho passando fome, e não fazer nada. Mas se você sabe que ele não tem dinheiro, dificilmente dará um cheque para esta pessoa. Existe no país uma solidariedade muito grande, às vezes informal, invisível, governamental ou do terceiro setor, que evita que pessoas extremamente pobres passem fome. É por isso que existe uma proporção significativa da população que se alimenta, apesar de não ter recursos para comprar alimentos.
E o que leva pessoas acima da linha da extrema pobreza a terem fome?
PAES DE BARROS: Muitos extremamente pobres no Brasil não passam fome.
Por outro lado, muitos que não são extremamente pobres passam fome. Isto prova que dar renda para sair da linha da extrema pobreza não é necessário para acabar com a fome e que esta não é um subconjunto da extrema pobreza. Aí está a questão: se você não tem acesso a uma rede, a renda necessária para não passar fome é bem alta.
Numa região metropolitana, a pessoa precisaria receber três vezes mais do que realmente ganha para garantir a alimentação da família.
Isto significa que programas distributivos, como o Bolsa Família, são paliativos?
PAES DE BARROS: Transferir renda para as famílias é ótimo e acaba aliviando, sim, a pobreza em certas famílias. O problema é quando este tipo de programa é a única estratégia para combater a fome. Aí, sim, é um pouco ineficiente, já que se sabe que grande parte dos recursos transferidos não será gasta só com alimentos. Sem dúvida, o Bolsa Família é uma das melhores iniciativas feitas no país em termos de política social e tem que continuar. O problema é que a fome tem que ser tratada diretamente.
Os que ainda passam fome é porque não têm capital social algum.
Esta explicação vale para as regiões como o sertão?
PAES DE BARROS: É claro que existem comunidades sem recursos, como na África ou no Nordeste brasileiro.
Mas são situações isoladas.
Não estou dizendo que o Bolsa Família não ajude a acabar com a fome.
Mas se tivéssemos um mapa com os focos de insegurança alimentar, seria mais eficiente do que tentar atacar (o problema) com programas como o Bolsa Família.
A fome no país deixou de ser um problema econômico?
PAES DE BARROS: Quem passa fome no Brasil, em geral, é o pobre, que vive rodeado de alimentos seja nas padarias ou nos supermercados. Isto prova que a fome no Brasil e no mundo continua sendo um problema econômico.
A diferença é que hoje, ao contrário do que ocorria nos anos 40, o país ficou mais rico. Hoje, a fome no Brasil está misturada com a não-fome, o que não ocorria na época de Josué (o geógrafo Josué de Castro, autor do livro “Geografia da Fome”). Na época dele, a fome era concentrada. Hoje está espalhada, mas muitas vezes maquiada pelas redes de solidariedade, o que acaba dando a impressão de que a falta do poder econômico não leva à fome.
A inflação dos alimentos volta a ser uma preocupação no mundo. O senhor acredita que o Brasil será atingido por ela ou está blindado?
PAES DE BARROS: A produção de alimentos no Brasil dá para alimentar a população brasileira em uma vez e meia. Estamos absolutamente longe de uma escassez de alimentos. Como hoje existem usos alternativos da terra, isto pode levar à elevação dos preços dos alimentos. Mas, afinal, elevar o preço dos alimentos é bom ou ruim? Depende.
Existem muitos pobres que vivem produzindo alimentos. Para eles, a alta de preços seria muito boa. Quem entra pelo cano é o pobre urbano, já que ele vai ver o preço da cesta básica subir muito acima de sua capacidade de compra. A inflação dos alimentos vai acabar mudando o mapa da fome no Brasil. A fome no meio urbano tende a crescer mais do que a rural, pois a agricultura familiar no país é muito forte.
“O assunto deste livro é bastante delicado e perigoso. A tal ponto delicado e perigoso que se constitui num dos tabus de nossa civilização. Trata-se de um silêncio premeditado pela própria alma da cultura Foram os interesses e os preconceitos de ordem política e econômica da nossa chamada civilização ocidental que tornaram a fome um tema proibido
O maior absurdo de nossa sociedade é termos deixado morrer centenas de milhões de indivíduos de fome num mundo com capacidade quase infinita de aumento de sua produção e que dispõe de recursos técnicos adequados à realização desse aumento Trechos de “Geografia da Fome”, de Josué de Castro
[EcoDebate, 29/08/2008]