Se não temos utopias, nos perdemos nos interesses individuais. Entrevista com Leonardo Boff
Nada do humano é alheio a Leonardo Boff. Autor de uma grande obra, centrada na Teologia da Libertação, militante ecológico, ele esteve, recentemente, na Argentina. Na ocasião foi entrevistado.
A entrevista é de Claudio Martyniuk e publicada pelo jornal Clarín, 24-08-2008.
Eis a entrevista.
Qual é o balanço que se pode fazer da difusão da Teologia da Libertação na América Latina? A luta contra a opressão segue sendo um ideal vigente?
A Teologia da Libertação segue vigente naquelas igrejas e grupos que tomam a sério a injustiça social e a opressão que sofrem as grandes maiorias. Hoje é nos movimentos populares, nos círculos bíblicos, de caráter ecumênico, onde a Teologia da Libertação encontra sua maior difusão. Está presente em todo o mundo, na Ásia, África, América Latina e em grupos solidários do Primeiro Mundo. Isto se pode comprovar nos fóruns mundiais da Teologia da Libertação que se fazem uma semana antes dos fóruns sociais mundiais, seja em Porto Alegre, em Nairóbi e, no próximo ano, em Belém, no Brasil.
Sua atual preocupação ecológica, como se vincula com a teologia? Há uma “ponte” entre teologia e ecologia?
A Teologia da Libertação nasceu escutando o grito do oprimido: pobres econômicos, indígenas, afrodescendentes, mulheres. Hoje gritam as águas, os bosques, os animais, é toda a Terra que grita. Dentro da opção pelos pobres e contra a pobreza deve ser incluída a Terra e todos os eco-sistemas. A Terra é o grande pobre que deve ser libertado junto com os seus filhos e filhas condenados. E a opção pelos pobres é a marca registrada da Teologia da Libertação.
A maioria dos problemas ecológicos são causados pelas nações mais ricas. O que podem fazer os mais pobres para preservar o ambiente?
A causa principal do clamor ecológico é o tipo de produção e consumo que se impôs desde os países ricos sobre todo o mundo. Este sistema explora as pessoas, as classes, os países e a Terra. A conseqüência se nota agora com o aquecimento global que pode colocar em risco a biodiversidade e, no limite, a espécie humana. Aos pobres cabe gritar, denunciar e lutar para que se mude este paradigma tecno-científico e a cultura produtivista e consumista. Caso contrário, vamos todos ao encontro do pior. Não há uma arca de Noé que salve alguns e deixe morrer aos demais. Ou nos salvamos todos, ou morremos todos. Os pobres são aqueles que por sua situação de explorados vêem melhor a perversidade deste sistema anti-vida.
A filosofia da história moderna nos legou a idéia de um caminho de desenvolvimento infinito. Esta idéia se encarnou sobretudo no campo da produção técnica. Com esta ideologia é possível estabelecer uma ordem social ecológica? Na sua opinião, que idéia deveria substituí-la?
Um desenvolvimento infinito é impossível num planeta finito e com recursos escassos. Esta idéia é uma ilusão não totalmente assimilada pelos que detêm a condução dos processo produtivo no mundo. Mas já se estão dando conta de que a lógica deste tipo de desenvolvimento está em contradição com a lógica da vida. Ou mudamos ou a Terra não vai agüentar. É preciso passar de uma sociedade de produção de produtos materiais a outro tipo de sociedade de sustentação de toda a vida, e da produção de valores humanos que possam ser partilhados por todos, porque a Terra é de todos. Temos que produzir para atender às demandas humanas em sintonia com os ciclos da natureza e com sentido de eqüidade na distribuição dos benefícios e serviços para todos.
No plano ecológico mental, o senhor dá uma especial relevância ao lado feminina que todos os seres humanos têm, já que o associa a uma ética do cuidado. Que efeitos sociais teria a extensão desta atitude entre os membros da família humana?
Somos herdeiros de uma cultura patriarcal que se impôs nos últimos doze mil anos. Ela criou o Estado, as leis, a burocracia, os exércitos e a guerra. Esta cultura dominou a mulher ou a tornou invisível na sociedade. Isto significou uma recíproca desumanização porque o homem reprimiu o feminino que há nele e forçou a mulher a reprimir o masculino que há nela. Cada ser humano é sustentado por estas duas forças constituintes da nossa identidade: o feminino que responde pela capacidade humana de acolhida, de entretenimento, de sensibilidade, de cuidado e de sentido do simbólico e do espiritual, e pelo masculino que diz respeito à racionalidade, ao trabalho, à superação de obstáculos, ao poder e à utilização da força. No homem e na mulher coexistem estas duas dimensões. Quando são bem articuladas e assumidas de forma integradora, compõem a excelência do ser humano. A mulher é a portadora privilegiada, sem ser exclusiva, desta dimensão do feminino. Por isso está mais próxima da complexidade, da vida e do cuidado que a vida necessita. Hoje se faz urgente resgatar o feminino para tratar melhor a natureza, respeitar a alteridade e salvaguardar a vida ameaçada.
É possível restabelecer alguma utopia na nossa época? Que características deveria ter?
Uma sociedade não vive sem utopias, isto é, sem um sonho de dignidade, de respeito à vida e de convivência pacífica entre as pessoas e povos. Se não temos utopias nos perdemos nos interesses individuais e grupais e perdemos o sentido do bem viver em comum. No meu entender, a utopia que pode reencantar a vida é uma relação de reverência e respeito com toda a vida, de sinergia com as forças da natureza, de hospitalidade com todos os seres humanos e de convivência na diversidade de culturas, religiões e de visões de mundo. Uma utopia de uma Terra organizada desde uma articulação central de valores, princípios e poderes que administrem os recursos escassos para todos, habitando como uma família na mesma casa comum, a Terra. Isto não é impossível. Efetivamente vamos construir uma sociedade assim ou, possivelmente, Gaia, a Terra viva, não vai mais nos suportar e vai nos expulsar como uma célula cancerígena.
No mundo há fome e aumenta o preço dos alimentos. Deveria existir uma ética para moderar o negócio dos produtos destinados a satisfazer as necessidades básicas dos seres humanos?
Eu creio que a fome de milhões de pessoas, não por falta de alimentos mas pela incapacidade de adquiri-los por causa da grande pobreza, demonstra a ausência de sensibilidade ante o sofrimento dos outros seres humanos. Somos cruéis e sem piedade. Existe a urgência de uma governabilidade central da humanidade e da Terra que tenha poder para garantir aos vulneráveis o alimento necessário, suficiente e decente. Comer é um direito humano fundamental e é um dever de todas as sociedades e Estados garanti-lo, porque somos filhos e filhas da Terra. Creio que lentamente vamos caminhando nesta direção porque de outra maneira não vamos manter a família unida, mas bifurcá-la entre aqueles que comem e aqueles que não comem.
O consumismo é uma característica de nossa civilização. Como se poderia temperá-lo, torná-lo responsável?
Cada um tem que desenvolver uma consciência de solidariedade humanitária e de responsabilidade universal. O consumo deve ser medido, deve alcançar uma justa medida. Podemos viver bem com menos. Importa incorporar valores intangíveis que dão sentido à vida e a convivência, como o cuidado mútuo, a compaixão com os que sofrem, a cooperação para que todos tenham o necessário. Cada tem que fazer a revolução molecular, isto é, começar por si mesmo e realizar o que Gandhi dizia: “Sejas tu mesmo a solução e o mundo que tu queres para os outros”.
É possível, neste mundo, manter o sentido do humor? Que formas de felicidade podemos alcançar?
Apesar do abatimento e da melancolia que a atual situação do mundo nos pode produzir subjetivamente, podemos manter o sentido do humor porque existe em nós a irrefreável convicção de que a vida é mais forte do que a morte e que podemos desfrutar o que a Terra nos brinda com sua vitalidade e que os seres humanos criaram com a sua capacidade. Há potencialidades em nós e no processo evolutivo que, contudo, não se realizaram e que podem irromper, abrindo um novo ciclo na história, mais integrador e mais respeitoso da cada ser do universo.
O atual Papa é muito crítico do relativismo ético. Qual é a sua posição ante o relativismo?
Tudo o que é criado e está em processo de crescimento e de evolução é relativo num duplo sentido: relativo na medida em que está sempre relacionado como todo o resto e que ninguém vive fora da relação. Relativo num segundo sentido de que o absoluto é somente Deus. Tudo o mais é relativo, pode mudar, pode ser diferente, não pode se impor aos outros. Somente espíritos autoritários impõem o seu relativo como algo absoluto, congelando a história e o caminhar dos humanos. O que devemos assumir é nossa transitoriedade com responsabilidade, com sentido de respeito e veneração, caminhando junto com os outros e construindo algo coletivo que seja bom para a vida e para a convivência entre as diversidades humanas.
(www.ecodebate.com.br) entrevista publicada pelo IHU On-line, 25/08/2008 [IHU On-line é publicado pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, em São Leopoldo, RS.]