Raposa e os gafanhotos, artigo de Marcelo Leite
Homologação da terra indígena não ameaça a integridade do território nacional
[Folha de S.Paulo] No norte de Roraima há um lugar que os macuxis chamavam de Pedra da Raposa. Era a casa onde elas se encontravam, desde sempre. E por muito tempo, também, foi o local em que os índios se reuniam para sair em pescaria.
Por ali andou igualmente Insikiran, um dos irmãos de Macunaíma. Ele, o grande herói macuxi cujo nome foi imortalizado -para nós, quase-não-índios- na obra-prima de Mário de Andrade. Um lugar sagrado.
A Pedra da Raposa hoje se chama Pedra Preta, nome bem prosaico dado pelos brancos (há de fato uma rocha escura por ali). Ela se encontra na divisa de uma fazenda do arrozeiro Paulo César Quartiero, líder da resistência contra a homologação da Terra Indígena Raposa/Serra do Sol (TIRSS). Índios não têm mais acesso ao local.
Tais informações se encontram num documento de importância histórica, que com sorte será levado na devida conta pelo STF (Supremo Tribunal Federal) na próxima quarta-feira. Nessa data o STF começa a deliberar sobre a ação popular nº 3.388, movida pelo senador Augusto Botelho (PT-RR) contra a terra indígena.
As informações fazem parte do arrazoado em favor do decreto de homologação da TIRSS escrito por Joenia Batista de Carvalho e Ana Paula Souto Maior. Sua importância é histórica não só porque o STF promete firmar jurisprudência para futuras homologações, mas também porque Carvalho é uma índia.
Souto Maior, por sua vez, é advogada do Instituto Socioambiental (ISA, uma ONG nacional que os fazendeiros de Roraima e seus aliados militares não hesitariam em qualificar como quinta-coluna). Na página de internet do ISA podem ser lidos esse e outros documentos instrutivos sobre a terra indígena. Dá tempo de ler, até quarta, e não será mal empregado.
Dois textos são de leitura obrigatória. O primeiro é um relato histórico escrito por Nádia Farage e Paulo Santilli. (Santilli é autor também do laudo antropológico desqualificado pelos adversários da TIRSS.)
Ali o brasileiro desavisado fica sabendo que não faz sentido acusar a homologação da terra indígena de ameaçar a soberania ou a integridade do território nacional. Afinal, aquele pedaço de Roraima não seria Brasil se não fossem os… índios.
A partir dos séculos 17 e 18, a posse sobre a Amazônia Ocidental foi sendo garantida por Portugal, contra a Espanha, com a construção de fortes e o aldeamento de povos indígenas. O relacionamento estreito com os índios era usado para atestar a posse do território, exigência do Tratado de Madri (1750). “Os Gentios erão as Muralhas dos Certoens”, registrava parecer do Conselho Ultramarino em 20 de dezembro de 1695.
Até o século 19, a mesma argumentação seria empregada para garantir aquele canto de Roraima ao Império Brasileiro, em seu litígio com a então Guiana Inglesa, entre outros por Joaquim Nabuco.
Outro documento imperdível é uma “Nota Técnica” do ISA. Ela fere de morte um dos pontos centrais da argumentação dos arrozeiros e do senador do PT: a velha ladainha de que é muita terra para pouco índio.
A TIRRS abrange 7,8% do território roraimense. Somada às outras terras indígenas, a área reservada total alcança 46% do Estado. Os índios aldeados constituem 49% da população rural de Roraima. A parcela de terras é bem proporcionada. A não ser, claro, do ponto de vista daqueles que Penaron Makuxi, no texto de sua parente Joenia Batista de Carvalho, chama de gafanhotos: os que vêm, comem, destroem e vão embora.
Marcelo Leite é autor de “Promessas do Genoma” (Editora da Unesp, 2007) e de “Brasil, Paisagens Naturais – Espaço, Sociedade e Biodiversidade nos Grandes Biomas Brasileiros” (Editora Ática, 2007). Blog: Ciência em Dia (cienciaemdia.folha.blog.uol.com.br ).
Artigo originalmente publicado na Folha de S.Paulo, 26/08/2008
[Ecodebate, 27/08/2008]