presença indígena na ocupação de nossos limites territoriais: Guardiões de fronteira, artigo de Fernando de Tacca
Rondon no topo do monte Roraima, na fronteira do Brasil com a Venezuela e a Guiana Inglesa, com as bandeiras dos três países, e acompanhado de índios macuxis, em 27 de outubro de 1927.
O recente conflito na implantação da reserva indígena Raposa Serra do Sol colocou militares de alta patente como protagonistas de falas contrárias à demarcação de terras contínuas e com críticas à política indigenista atual, principalmente em áreas de fronteiras. Vale lembrar que, se existe política indigenista no Brasil, deve-se à ação inconteste de Cândido Mariano da Silva Rondon. Engenheiro formado pela Escola Militar da Praia Vermelha, de onde também saiu Euclides da Cunha, o Marechal Rondon criou em 1910 o Serviço de Proteção ao Índio e Localização do Trabalhador Nacional (SPILTN), a partir de 1918 chamado de SPI. Este órgão governamental já trazia implícito no seu nome a idéia de integração das populações indígenas ao processo produtivo nacional. A integração dos povos indígenas via ação civilizatória do Estado, pelas ações do SPI, não implicava na perda das identidades e das tradições com a incorporação de valores da nação. A chamada Comissão Rondon, responsável pela ocupação territorial através da expansão do telégrafo utilizou mão-de-obra indígena para abrir suas picadas na mata, e também instrumentalizou índios para ocupar os próprios postos de telégrafos, como foi o caso dos nhambiquaras em Barão de Melgaço
Entretanto, mesmo com a inserção do índio como um trabalhador integrado nas ações civilizatórias de Estado, tais ações se contrapunham às posições religiosas dos missionários, pois permitia a absorção dos valores e símbolos nacionais na construção paradigmática de um índio brasileiro de fronteira em plenitude étnica. Com formação humanística marcada pelo positivismo de Auguste Conte, Rondon implementou uma política de proteção às populações indígenas e propiciou a presença civilizatória do Estado brasileiro em terras longínquas e de difícil acesso na selva amazônica.
Rondon, no comando da Inspetoria de Fronteiras, organizou uma longa expedição rumo ao monte Roraima, nas fronteiras entre Brasil, Venezuela e Guianas. A expedição rumo ao lendário complexo montanhoso foi organizada com mais de 180 índios macuxis, com suas mulheres e filhos da aldeia do Barro, que acompanharam Rondon até a tríplice fronteira. O filme “Viagem ao Monte Roraima” (1927), realizado pelo major Thomaz Reis, mostra as dificuldades que a expedição teve na travessia de rios e montanhas. A cena final do filme, como apoteose e como ocupação simbólica da fronteira, nos apresenta aqueles que poderiam guardá-la, os próprios habitantes do lugar, os índios macuxis, reconhecidos como brasileiros. Rondon aparece segurando a bandeira nacional ladeada pelas bandeiras da Venezuela e das Guianas, em meio um grupo numeroso de índios macuxis, no topo do monte Roraima. E é isso que Rondon anuncia para toda a nação naquele momento: a existência de uma população indígena brasileira naquele distante lugar.
O antropólogo Antonio Carlos de Souza Lima identifica o termo “guarda de fronteira”, que aparece nos textos oficiais do SPI, como um conceito estratégico e como marca simbólica da ocupação das nossas fronteiras por índios brasileiros. As ações do médico e sanitarista Noel Nutels, quando criou o SUSA – Serviço de Unidades Sanitárias Aéreas (1956-1973) – e que proporcionou trabalho de atendimento médico às populações indígenas no Brasil, contaram com a colaboração de nossas Forças Armadas, principalmente da Aeronáutica, pois sem tal logística seriam impossíveis suas ações assistenciais.
A presença indígena na ocupação de nossos limites territoriais como uma proposta estratégica de Rondon ao incorporá-los na idéia de nação tornou-os guardiões simbólicos de nossas fronteiras. Que a memória de Rondon e dos guardiões macuxis de nossa fronteira seja relembrada pelos militares e pela sociedade brasileira, e lhes seja somente dado o que lhes é de direito, a terra; e aos militares somente sua função, a defesa da soberania nacional e incentivadores de suas próprias memórias em mais ações generosas, como as de Rondon e Nutels, e que não as confundam com a autonomia legal indígena em suas reservas.
Fernando de Tacca é antropólogo e professor livre docente do Instituto de Artes da Unicamp.
Artigo publicado no Jornal da Unicamp, ANO XXII – Nº 405
[EcoDebate, 23/08/2008]