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Artigo

O Velho Chico e os oitenta milhões de árvores do Paraná, artigo de Beto Almeida


A grande mídia comercial dedica seu tempo a divulgar agendas sociais de políticos, e deixa de dar importância a ações em favor do meio ambiente

“Eu tenho esses peixes e vou de coração
eu tenho estas matas e vou de coração
à natureza”
Milagre dos Peixes – Milton Nascimento e Fernando Brant

[Brasil de Fato] A grande mídia comercial pré-paga revela, com freqüência instigante, as agendas sociais do governador de Minas Gerais, Aécio Neves, a cada final de semana, na insuperável vida noturna do Rio de Janeiro. Não é o caso de fazer comparações sobre o volume de espaço midiático dedicado a tão edificante informação para a cidadania brasileira, que nada, isto é coisa de comunicólogo azedo, dirão alguns.

A mesma mídia ignora sistematicamente a decisão do governo do Paraná de plantar 80 milhões de árvores em seu território que, como no país inteiro, viu-se devastado em razão de um modelo de desenvolvimento petro-dependente capitaneado pelo agronegócio transnacional e pelo incremento de uma pauta de exportação dominada por produtos primários, tal como prevê o novo mapa mundial do neocolonialismo. Para os países ricos, a “concepção” da produção, as funções especializadas, bem remuneradas, com o uso intensivo de tecnologias de ponta; aos países da periferia, a “execução” da produção, o desemprego crônico, a desespecialização da mão-de-obra, a desindustrialização da produção e da exportação, cujos produtos cada vez mais matéria-prima, com selinho coloniais e tudo, têm preço definido lá fora, por quem comanda o comércio internacional. E não somos nós.

Assim como temos o direito de indagar sobre a relevância informativa da agenda, digamos, cultural do jovem governador mineiro – pré-candidato à presidência do país – , também nos é dado o direito de tentar entender porque o plantio de 80 milhões de árvores não contém, para a mídia comercial, qualquer relevância noticiosa, quando o mundo discute com perplexidade e aflição o aquecimento global, o desmatamento, as novas leis de crimes ambientais etc. Será que o inédito gesto do governador do Paraná de cortar o cordão umbilical da dependência e da cooptação entre mídia e Estado, zerando as verbas publicitárias, também chamadas de “o mensalão do coronelismo eletrônico”, tem influência na transformação dos 80 milhões de árvores numa não-notícia? É vasto o nosso deserto informativo…

Nasce ali na Serra da Canastra, não muito longe da Serra da Boa Esperança que inspirou inapagável canção de Lamartine Babo, com o mesmo título, o nosso rio São Francisco. Ele corta o Grande Sertão de Guimarães, ele desagua na sanfona de Gonzagão em acordes e versos filosofando sobre “o rádio e terras civilizadas”; ele torna ainda mais misterioso o mistério do Ciúme de Caetano, flutuando entre duas cidades que se amam com infinita dor, sem descifrar a alma do Velho Chico que vem de Minas, “onde o oculto do mistério se escondeu”. ´

Para além da dor e da alegria da música que inspira, dos personagens brasileirões que nutre na imaginação de Guimarães para fazer nascer os Manuelzões, a dura realidade é que o Velho Chico está sangrando devagar. Tão devagar quanto mais duradoura e interminável é esta dor de ver aquele orgulho dos brasileiros – aquele rio da Unidade Nacional amado por todos – rebaixado em vergonha, pela nossa incapacidade de realizar um projeto sócio-econômico-ambiental que o impeça transformar-se na cloca contaminada da República, vendo os predadores dos cofres públicos atirar naquelas águas já embaçadas e sufocadas, o veneno químico resultante dos “podres poderes” também registrados em outra canção do Caetano. E tome lixo, tome desprezo, tome negligência, e tome hipocrisia ambiental, vai tudo naquele leito. É alumínio, é agrotóxico, é mercúrio, é esgoto, é incentivo fiscal do BNDES, é dívida rural quase que eternamente perdoada.. tudo se joga, com raiva e indiferença, no Velho Chico. Ele que agüente!!! Eis aí o nosso padrão ambiental bárbaro, imposto pelo capitalismo pra lá de bárbaro, já que os selvagens eram mais puros, mais responsáveis até.

Oitenta milhões de árvores lá embaixo, no Paraná. O Velho Chico não deve ter mais de 4 mil quilômetros de extensão. Quantas mãos desocupadas temos no Brasil ainda desempregadas? Quantas árvores precisamos para replantar menos de 4 mil quilômetros de margens da nossa brasilidade devastada pela incúria? Quem deve fazer as contas de quantas árvores e quantas mãos necessitamos para sentirmos, novamente, orgulho legítimo do nosso rio, são os técnicos, o Batalhão de Engenharia do Exército, que, aliás, foi convocado para construir, bravamente, a Ferroeste, lá no Paraná, a única ferrovia edificada nesta quadra de paralisia ferroviária que sucedeu a privataria devastadora do setor.

O geólogo Marcello Guimarães, um dos pioneiros da energia renovável da biomassa, ex-diretor do Departamento Nacional dos Combustíveis, desafia-nos a provar se é mesmo verdadeiro nosso amor e nosso orgulho pelo Velho Chico. A recuperação de suas matas ciliares é tarefa perfeitamente realizável se nossos tecnocratas não tremessem de tanto desejo e furor pelo endividamento externo, mesmo que seja para a simples colocação de meio-fio na periferia de uma cidadezinha do interior, “uma cidadezinha qualquer”, poetisa o mineiro Drummond. Não importa que haja paralelepípedos em abundância nas redondezas, é mais chique fazer um empréstimo junto ao FMI para….. calçar ruas com pedras que temos aqui mesmo.

Para recuperar o Velho Chico não precisamos de nenhum empréstimo externo. Ao contrário, temos de sobra os ingredientes, a força social e a biodiversidade. Uma grande mobilização em Minas, com a força de seu ferro, com a dignidade de suas montanhas e com a audácia de seu histórico amor rebelde pela liberdade, permitiria juntar desempregados, talvez também com a participação do exército, e mesmo militantes do MST não se negariam, para replantar milhões de árvores ao longo das margens da nossa própria alma brasileira encravada ali naquele rio! E também no sertão da Bahia, com um pouquinho da energia rebelde degolada em Canudos, poderíamos sim mobilizar batalhões de desempregados para o replantio, para salvar o Rio, para irrigar com mais força nossas consciências, inclusive acerca da gritante urgência de uma reforma agrária que encontre, a longo do rio querido, “um jeitinho prá viver” , como diz a canção do baiano Gil, não apenas para fazer canções, literatura e lamentos sobre a seca definhante em curso.

Será que a Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba (Codevasf), órgão vinculado ao Ministério da Integração Nacional, não pode meditar um pouquinho sobre o quanto se pode fazer com mobilização da consciência nacional, dos desempregados, de alguns batalhões do exército, da militância do MST, dos ribeirinhos, índios, quilombolas, dos nossos artistas, cientistas para pensar, um bocadinho que seja, no exemplo não noticiado das 80 milhões de árvores do Paraná? Se a grande mídia comercial, com sua volumosa capacidade de penetração permitisse uma parte do espaço que reserva para divulgar a interessantíssima vida social do governador mineiro no Rio de Janeiro, quem sabe poderíamos construir um grande debate nacional em torno de idéias e de um plano concreto para salvar o Velho Chico? Será que a TV Brasil acende novamente nossa necessária indignação para o debate inadiável?
“Eu tenho essas matas e dou de coração”

Beto Almeida é jornalista, membro do Conselho editorial do Brasil de Fato e diretor da Telesur.

Artigo originalmente publicado pelo Brasil de Fato.

[Ecodebate, 13/08/2008]