Abaixo os jipões, artigo de Marcelo Leite
[Folha de S.Paulo] É curioso que as pessoas se preocupem tanto com a qualidade do ar em Pequim. Particularmente em São Paulo, essa mania tem muito de postiça. Além de parar de pensar com a própria cabeça, vamos também começar a respirar com o pulmão dos atletas olímpicos?
Nem a chuva de verão que despencou na terça-feira, em pleno inverno (vá lá, acontece), parece ter sido capaz de lavar a poluição que inflama os brônquios e resseca as narinas. Basta um pouco de sol para a camada de ozônio e material particulado ficar visível no horizonte. Um “photo-smog” quase palpável, para chinês nenhum pôr defeito.
Apesar disso, assistimos a um frenesi de jipões. Nas rodas chiques, são os famigerados “SUVs”, ou “sport utility vehicles” (veículos esportivos utilitários, mais uma contradição de propaganda nos termos).
Não há dia em que abra revista ou jornal sem topar, nos espaços mais caros, com uma sucessão de anúncios exibicionistas. Nas ruas, também, os jipões parecem cada vez mais numerosos. Deve ser irresistível, para os endinheirados, pagar o preço de um apartamento pequeno para rodar com sete bancos de couro acionados e aquecidos eletricamente -vazios.
Que desperdício se os dez airbags inflarem todos ao mesmo tempo. A tração nas quatro rodas, presume-se, tornou-se insubstituível para enfrentar os buracos do asfalto e as enchentes. Equipamento de sobrevivência, assim como ar-condicionado, insulfilme e vidros blindados.
Motoristas do sexo feminino, em especial, sentem-se mais seguras na posição elevada de dirigir, já me disseram.
É o preço a pagar pela afluência, talvez, ou pela “retomada do crescimento econômico”. Nunca antes na história deste país houve tanta gente com sobra de dinheiro e falta de visão para cobiçar e comprar um carro desses.
Melhor que isso, só mesmo um helicóptero, e não falta quem ache bacana a cidade de São Paulo ter a segunda maior frota do planeta…
Os SUVs foram uma invenção esperta da indústria automobilística dos Estados Unidos. Sua verdadeira utilidade era driblar os padrões cada vez mais rígidos de eficiência no consumo de combustível e de emissão de poluentes, a partir da década de 1970 (Corporate Average Fuel Economy, conhecida pela sigla Cafe).
Como utilitários, os jipões escapavam das regras. Nos anos 1990, começaram a vender como chuchu em fim de feira. Os americanos podem ser ingênuos, ou cínicos, mas não dormem no ponto. Sob pressão de ambientalistas, depois da imprensa e do Congresso, os padrões começaram a ser apertados para os SUVs, também.
No momento, os jipões começam a sair de moda pelo mundo afora. Bem, pelo menos no que costumamos chamar de mundo civilizado. No Reino Unido, a candidata do Partido Verde à Prefeitura de Londres, Siân Berry, chegou a fundar uma Aliança contra os 4X4 Urbanos. Na China, como aqui, devem ser coqueluche (também conhecida pelo nome de tosse comprida, bem a calhar para quem respira o ar de lá e o daqui).
Em São Paulo, não é incomum ver SUVs adornados com adesivos de organizações ambientais, como S.O.S. Mata Atlântica, Greenpeace e WWF.
Já vi mais de um jipão dirigido por manda-chuvas de ONGs, aliás. Sempre é bom lembrar que a maioria desses beberrões não é flex e roda a gasolina, quando não a diesel.
Houve um tempo em que usar casaco de peles era politicamente incorreto, por boas razões. Não é que outro dia topei com um no Festival de Inverno de Campos de Jordão?
Marcelo Leite (ciencia.folha@uol.com.br) é jornalista, autor de “Promessas do Genoma” (Editora da Unesp, 2007) e de “Brasil, Paisagens Naturais – Espaço, Sociedade e Biodiversidade nos Grandes Biomas Brasileiros” (Editora Ática, 2007).
Artigo originalmente publicado pela Folha de S.Paulo, 10/08/2008.
[EcoDebate, 13/08/2008]
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