UHE Estreito: Sob suspeita, compensações substituem políticas públicas
Royalties e postos de trabalho gerados em função da Usina de Estreito convencem apenas parte da população. Negociação de indenizações e critérios de reassentamento de atingidos têm sido foco de denúncias e polêmicas
Por Beatriz Camargo, da Agência de Notícias Repórter Brasil.
Parte II – Pressão
Os royalties decorrentes da construção da Usina Hidelétrica (UHE) de Estreito, que está sendo construída na divisa do Maranhão com o Tocantins, servem de argumento para os defensores do empreendimento. No total, o Consórcio Estreito Energia (Ceste) – que toca a administração e construção da barragem – desembolsa quase R$ 21 milhões, entre compensações para as prefeituras – proporcionalmente à área inundada -, governos estaduais e União. As compensações financeiras, altas se comparadas à arrecadação de impostos dos municípios, seduzem os prefeitos e, de acordo com integrantes do Ministério Público Federal (MPF), comprometem a imparcialidade nas negociações. “Os gestores perdem a oportunidade de trazer mais melhorias para a região”, avalia o procurador Pedro Henrique, do MPF de Imperatriz (MA).
Para os prefeitos, a questão é prática: geração de empregos e dinheiro no caixa. “Esse desenvolvimento está sendo bom. Quando eu assumi a prefeitura, quatro meses de salário estavam atrasados. Com a obra, a cidade cresceu: saiu de 20 mil e agora tem 45 mil habitantes”, declarou o prefeito de Estreito (MA), José Lopes Pereira (PV), o “Zeca Pereira”, na audiência realizada em Brasília, no mês de maio deste ano, para debater a obra. O município, onde está concentrada a maioria das obras, recebe anualmente em royalties cerca de R$ 932 milhões.
Além dos repasses financeiros, um acordo social do Ceste com as administrações locais prevê uma série de ações, muitas delas de responsabilidade do Estado. O Hospital de Estreito (MA) foi informatizado por meio do acordo, que garantiu também o programa “Usina Social” – mutirão de serviços médicos, odontológicos e de documentação – passou pelas 12 cidades e foram disponibilizados cursos de capacitação sobre assuntos diversos. Além disso, houve ações pontuais, como a instalação de computadores na sede da colônia de pescadores Z-35, a doação de uma máquina de costura para o clube das mães frei Gil, e a construção de uma sede e doação de um torno elétrico para a associação de quebradeiras de coco de Palmatuba, distrito de Babaçulândia (TO).
O prefeito de Babaçulândia, Agemiro Dias da Costa, vê o empreendimento como um meio para melhorar a vida da população, com a instalação da rede de esgoto e obras públicas, “que já estão se iniciando”. Está prevista a construção de escolas, um centro de saúde, um centro de treinamento e da secretaria de educação. “Os objetivos da prefeitura são diminuir o impacto e melhorar a indenização e a qualidade de vida”.
Lavadeiras, pescadores, barqueiros e barraqueiros também querem indenização pelos impactos que a hidrelétrica vai causar às suas atividades; consórcio indeniza proprietários e agregados
O professor da Universidade Federal de Rondônia (Unir), Luís Fernando Novoa, atuante na Rede Brasileira pela Integração dos Povos (Rebrip) e na Rede Brasil, ambas articulações da sociedade civil, avalia que os critérios para a aplicação de compensações sociais têm parâmetros ruins. “Historicamente o que se observa em todas as hidrelétricas construídas no Brasil são processos de desestruração social, demográfica e cultural, pouco ou nada mitigados pelos empreendedores ou pelo poder público”.
Na mesma linha, o professor Célio Bermann, do Instituto de Energia e Eletrotécnica da Universidade de São Paulo (IEE/USP), observa que as compensações do empreendimento são resultado da incapacidade do governo de fazer investimentos sociais. “Dentro desse jogo de política de governo e interesse de empresas privadas, as empresas acabam incorporando investimentos que seriam de natureza governamental”.
Célio ressalta que os investimentos das empresas não têm nenhum controle social. “A população não tem meios para interferir e determinar onde aplicar o investimento. Isso fica muito mais sujeito ao interesse local de vereadores, deputados e prefeitos do que para a melhoria da população envolvida”.
Não há como negar que as cifras têm o poder de conquistar o poder local e boa parte da população. A coordenação do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) sublinha que muitas das pessoas que defendem a empresa e elogiaram o empreendimento na audiência pública ocorrida no Senado Federal em maio, têm ligação direta ou indireta com as obras – isto é, trabalham ou tem pessoas da família trabalhando para a construção da usina -, sobretudo em Estreito, onde mais empregos foram criados.
Além dos panfletos distribuídos em março contra a mobilização em frente à UHE Estreito, houve protesto contra a decisão de paralisação das obras da usina, em frente a Vara Federal de Imperatriz (MA), em junho. Os manifestantes pediam a retomada das obras e se diziam preocupadas com a extinção dos postos de trabalho.
Militantes do MAB enfrentam dificuldades para mobilizar os atingidos com vistas a melhores condições de indenização. “As pessoas falam assim: ´Mas o que o MAB vai me dar?´”, expõe Roosivelty Martins, do MAB, evidenciado o alastramento e o traço fecundo da lógica calcada na troca de favores.
Se muitos dos presidentes de associações apóiam a instalação da UHE Estreito e são contra a criação de um foro de discussão, os próprios associados se mostram em geral perdidos e distantes desse debate. Em geral, contudo, não enxergam o envolvimento de políticos na negociação com bons olhos. Um pescador de Babaçulândia que não quis se identificar conta que o presidente da associação da qual faz parte fez um relato da audiência na capital federal e definiu rapidamente a posição assumida por ele. Mas o assunto das indenizações, segundo ele, não foi discutido entre os associados. “Está faltando dar mais satisfação aos associados”, completa. “O chefe do Ceste, quando conversar, senta só com os presidentes das associações”.
A pescadora Maria do Amparo da Silva, conhecida como “Branca”, teem opinião semelhante. Acha ela que a associação – presidida, aliás, pelo seu cunhado – faz pouco pelos pescadores de Babaçulândia e está muito submetida ao poder do prefeito Agemiro. “Os barqueiros são os que estão mais brigando pelo grupo. Os pescadores têm medo [do prefeito], não sei por quê”.
O consórcio adotou a política de indenizar apenas proprietários e agregados. Para as pessoas com profissões ligadas ao rio, como pescadores, barqueiros, barraqueiros, lavadeiras e quebradeiras de coco de babaçu (que terão parte da área de trabalho, os babaçuais, inundada), a empresa prevê “manutenção de atividade e renda”, em programas específicos. “É um processo a longo prazo, feito junto com as associações e os associados”, relatou Norma Villela, do Ceste.
Seu Gabriel: deixar de plantar pasto para esperar indenização está dando prejuízo
Negociações
Em meio a tantos embates, as negociações para indenizar os proprietários ou agregados da beira-rio já começaram. A maioria da população atingida sempre viveu no mesmo lugar e nunca vendeu ou comprou nenhuma propriedade. Por isso, não sabe o valor oferecido como indenização é justo. Mas o que os moradores já conseguem identificar é que está havendo especulação imobiliária em toda a região. “Há quatro anos, você comprava um lote por R$ 300,00. Hoje [o mesmo lote] já está R$ 12 mil e continua subindo”, opina um pescador de Babaçulândia.
Ë visível a divisão dos que serão atingidos. Algumas se mostram animadas e acreditam que estão faturando com a compensação. Outra ala reflete o sentimento de insegurança, pois temem sair do lugar onde vivem há muito tempo e não conseguir comprar algo do mesmo padrão com o dinheiro recebido.
“Eles passaram o dia aqui avaliando e fizeram uma proposta ruim. Falei para eles, eles até acharam graça: ´O preço das minhas coisas quem põe sou eu´, é quem vende”, lembra um barqueiro de Babaçulândia. “Eu gostaria que não se falasse mais nessa barragem. As pessoas falam ´Ah, mas vai receber um bom dinheiro´. Mas o pessoal está pagando R$ 18 mil no lote, como é que é um bom dinheiro? Com esse preço, não dá para comprar outra [casa]”, diz, bastante desanimado.
As indenizações são inferiores às de outros empreendimentos do mesmo rio, como Peixe Angelical e São Salvador (veja quadro na reportagem anterior http://www.reporterbrasil.org.br/exibe.php?id=1401 ). A diretora Norma Villela justifica que as indenizações à população diretamente atingida por qualquer empreendimento devem considerar “as especificidades regionais e as diretrizes gerais emanadas pela legislação brasileira, pelos órgãos de licenciamento ambiental e pelo setor da economia ao qual o empreendimento se insere, quando existentes”.
Norma destaca ainda as benfeitorias (ações que valorizam o imóvel) também estão sendo remuneradas. “A cerca de quatro fios no mercado vale R$ 4,00, mas velha vale R$ 2,00. Estamos pagando R$ 6,00”, exemplifica. Mas, segundo os atingidos, plantações e árvores frutíferas não estão sendo consideradas. “Aqui tem babaçu, murici, cupuaçu. O babaçu dá azeite, carvão, palha para o telhado e artesanato… Mas eles disseram que não sabem disso [de indenizar as árvores plantadas] e nem poderiam”, reclama Cláudio José Vieira, liderança do Assentamento Formosa, em Darcinópolis (TO).
De acordo com os atingidos, a Barros Engenharia, empresa terceirizada do Ceste que cuida da negociação direta com as famílias, tem indicado que as pessoas parem de plantar ou fazer melhorias nos seus terrenos, porque a benfeitoria considerada será a da primeira visita de avaliação da propriedade. Os moradores ficam confusos porque dependem dos cultivos de subsistência de criações de gado para sobreviver.
Muitos moradores da região também declaram não concordar com a o tamanho da área que será disponibilizada no reassentamento para ocupantes. Cálculos da Fundação Instituto de Terras de São Paulo (Itesp) estimam que o tamanho mínimo de um lote, considerando o sustento de uma família, deve ser de 27,3 hectares. A proposta de reassentamento da empresa prevê 12 hectares para quem vive da roça e 40 hectares para quem cria gado, sob a regra de que o segundo precisa de área maior.
De acordo com Roosivelty, do MAB, em Babaçulândia e Carolina (MA) há cerca de 300 famílias que vivem do plantio nas vazantes do Rio Tocantins e não são comprovadamente proprietárias dos terrenos. Apenas uma minoria mantém atividade pecuária. Para ele, a área deveria ser a mesma para todos que estão sendo afetados pela obra, critério endossado pelo próprio prefeito de Babaçulândia.
Individual e Coletivo
Nas opções de indenização, nem todos os moradores estão interessados no reassentamento – embora essa seja a opção recomendada à população pelos movimentos sociais. Muitos falam em “manter a vizinhança”, outros têm medo que os lotes sejam “perto demais” uns dos outros e preferem a indenização em dinheiro.
Em geral, as negociações têm sido feitas individualmente. Casos como o do Assentamento Formosa e o das comunidades do entorno (Barra do Coco e Mato Verde), em que houve participação coletiva, são exceções. O procedimento que prevalece está ligado à maneira como o próprio cadastro de atingidos foi feito. “Aquilo que era coletivo, a comunidade com suas relações com o local e relações de parentesco, passa a ser individual, com cadastro individual e indenizações negociadas um a um,” pontua a sub-procuradora da República, Deborah Duprat.
Alguns atingidos visitaram o reassentamento da UHE Peixe Angelical e gostaram da maneira como os deslocados da Enerpeixe – consórcio fomado por Energias de Portugal (EDP) e Furnas – foram compensados. “Achei bom, com estrutura, energia, todo mundo lá feliz. Se for assim o nosso reassentamento, eu quero, para a gente começar bem”, diz Cláudio José Vieira, liderança do Assentamento Formosa.
Ameaças
Camponeses da região impactada pela Usina de Estreito denunciam que a empresa Barros têm se utilizado de ameaças e chantagem para convencer pessoas a assinar acordos sobre como será a compensação. Estariam dizendo que com ou sem indenização a barragem virá, sem dar o devido tempo que as pessoas leiam os contratos apresentados.
Os moradores, muitos deles semi-analfabetos, se sentem intimidados pela abordagem e acabam assinando sem saber o que está escrito no papel. Isso se daria principalmente com pessoas mais idosas. “Eles dizem ´O juiz assina e nós vamos fazer a barragem assim mesmo´”, exemplifica Cláudio José. “Está tirando o sossego da gente. Se for ver o que eles fazem, dá revolta”, complementa. Mateus Raul da Silva, também assentado, conta que já encontrou por duas ou três vezes “gente do Ceste abrindo picada [caminho], desmatando sem a nossa autorização”.
Cláudio, do Assentamento Formosa, arrola problemas relativos à negociação
O Ceste declara que a Barros foi contratada por um sistema de licitação, assim como as demais empresas terceirizadas. Ainda segundo o consórcio, a Barros Engenharia não responde a nenhuma questão relacionada à UHE Estreito.
Em entrevista à Repórter Brasil, Norma Villela disse nunca ter ouvido esse tipo de denúncia. “Não posso conceber que a Barros faça uma coisa dessas. O trabalho da Barros é justamente prestar apoio social”, coloca. “Não se pode confundir honestidade e transparência com má-fé. Nós avisamos ´Se você não concordar, vai ter que ser acionada a Justiça´. Isso é transparência”.
Compra de terra
A perspectiva da construção da barragem também semeou terreno fértil para a malandragem. Um exemplo de falcatrua foi o cadastro falso – e, obviamente, cobrado – para postos de trabalho na construção da UHE, antes mesmo do início das obras. A atitude de má-fé valeu até nota pública desautorizando a iniciativa,no site da internet mantido pelo consórcio.
O pagamento das indenizações, além da especulação imobiliária, também está associado a outro tipo de denúncia: a de que oportunistas estariam comprando casas de atingidos para depois revender ao Ceste, por um preço bem mais alto.
As suspeitas recaem sobre pelo menos dois prefeitos e presidentes dos comitês municipais: Agemiro Dias da Costa, de Babaçulândia, e Pedro Iran do Espírito Santo, de Filadélfia (TO). Pelo menos dez casas teriam sido compradas por Agemiro, mas não há documento que comprove as aquisições. À Repórter Brasil, ele negou veementemente as compras de imóveis, mas não vê problema na atitude. “Eu não tenho comprado áreas para especulação até porque não tenho suporte financeiro para isso. Mas se tivesse, eu compraria sem problema nenhum. Não tem nada que impeça nenhum cidadão de comprar alguma coisa se ele tiver dinheiro.”
Agemiro confirma, porém, a existência do problema da especulação. “Conheço gente de Palmas que comprou um monte de terra aqui na beira do rio no Maranhão ou no Tocantins. Quando se fala em barragem, o pessoal fica apreensivo porque as notícias das barragens anteriores é de que não pagaram ninguém. O ribeirinho ouve isso e fica achando que nunca mais vai receber. Então ele vai vender na primeira proposta que tiver e se mudar para outro lugar”.
Com relação a Pedro Iran, denúncias dão conta de que ele está comprando casas em Filadélfia, Barra do Ouro (TO) e Palmeirante (TO). Ele comprou casas na beira do Tocantins e deixou gente morando em contrato de comodato até a subida das águas. Além de prefeito de Filadélfia, Pedro Iran é também dono da Pipes, empresa de navegação fluvial que leva as iniciais de seu nome completo e domina o mercado de travessia de balsas na Bacia do Araguaia-Tocantins.
“Nós trabalhamos na beira do rio. Há terras que foram compradas ao longo dos anos. Tem fazenda na beira do rio. Ele [Pedro Iran] mora na beira do rio”, justifica a assessoria do prefeito. Pedro Iran declara ter mais de 60 casas no município de Filadélfia, além de propriedades em Carolina, Xambioá, Palmas, Tupiratins, Lageado, Miracema do Tocantins e Rio Sono, todos em Tocantins. “Aqui e acolá eu comprei umas casinhas. Não vou dizer que não, mas era gente doente que queria vender para poder ir se tratar”, explica o prefeito, confirmando que algumas delas serão atingidas pela barragem. “Eu paguei o preço que o dono pediu e coloquei meus funcionários para morar”.
A Pipes está em seis estados e, segundo Pedro Iran, já esteve em oito. A assessoria dele confirma que ele possui cerca de 130 mil hectares na região e é o maior pagador de impostos do Tocantins. “Ao longo de 50 anos de trabalho, ele amealhou uma certa fortuna, e uma certa quantidade de terras”.
Tudo o que vem sendo feito, pondera a diretora de socieconomia do Ceste, está sendo apresentado publicamente pela empresa. “Utilizamos veículos de comunicação para informar a população de todas as indenizações, de todos os procedimentos. Somos contra essa postura [de compra de terras para depois revender e lucrar com as indenizações], mas temos um limite de atuação, não há como controlar isso.”
Cabo-de-guerra
Há seis ações ma Justiça contra a construção da barragem. Três delas são do MPF, uma do Centro Indigenista Missionário (Cimi) em conjunto com o MAB e outra de um consórcio de municípios tocantinenses que reivindica que a empresa construa uma eclusa junto com a barragem, para facilitar a navegabilidade do rio. A ação argumenta que construir a eclusa depois de concluída a barragem geraria mais custos e também pediu medida urgente, mas a sentença foi favorável ao consórcio, sob o argumento de que já havia orçamento da União para a construção depois de concluída a usina.
A ação movida por Cimi e MAB conseguiu suspender as obras da UHE Estreito em abril de 2007. A decisão veio 15 dias depois da mobilização de cerca de mil pessoas, entre ribeirinhos e indígenas. A Rodovia Belém-Brasília foi ocupada no trecho da ponte sobre o Rio Tocantins (divisa entre Maranhão e Tocantins) por dez horas, e um grupo acampou em frente à entrada das obras em Estreito (MA), para reivindicar a suspensão da Licença de Instalação (LI) do empreendimento, que conta com R$ 3,1 bilhões do Plano de Aceleração do Crescimento (PAC) federal, na previsão que vai até 2010.
No entanto, no início de junho de 2007, as obras em Estreito foram retomadas por decisão da então presidente do Tribunal Regional Federal (TRF) da 1ª Região, Assusete Magalhães. “Ocupamos a obra, conseguimos a liminar, e a obra ficou parada. Voltamos para casa, mas [depois] perdemos a liminar. Não tínhamos nem força nem dinheiro para retomar a mobilização. Demoramos até março deste ano para reorganizar as pessoas”, avalia Cirineu da Rocha, coordenador do MAB no Tocantins.
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– Parte I : Impasse
[EcoDebate, 07/08/2008]