A quem pertence o conhecimento? artigo de Washington Novaes
[O Estado de S.Paulo] Mais uma vez, está em ebulição nos meios de comunicação o tema da propriedade do conhecimento na área dos medicamentos. Por dois motivos: 1) O reconhecimento de patentes de medicamentos nos planos internacional e nacional e o direito de “quebrá-las” em casos de necessidade pública; 2) condições de acesso de cientistas no Brasil ao conhecimento de comunidades tradicionais (índios, quilombolas e outras). No plano internacional, este jornal deu ampla cobertura à verdadeira guerra travada em maio no âmbito da Organização Mundial da Propriedade Industrial (Ompi), que regula a questão das patentes, na qual o candidato brasileiro acabou derrotado, por um voto, por outro candidato acusado até de corrupção e assédio sexual. No plano nacional, o embate continua em curso.
Na Ompi, a questão central é uma tentativa de reformular o sistema de reconhecimento de patentes de medicamentos. A proposta enfrenta fortíssima resistência das empresas multinacionais do setor, porque estas desejam que o reconhecimento prossiga mesmo após o prazo de vencimento – contra o desejo de países que querem ter o direito de fabricá-los como genéricos, principalmente medicamentos para tratamento de aids. O temor daquelas empresas é quanto à expansão do mercado de genéricos, que já está na casa dos US$ 36 bilhões anuais e deve chegar, em 2015, a US$ 90 bilhões (Estado, 29/4). Só o mercado mundial de medicamentos derivados de espécies vegetais, segundo o conceituado Thomas Lovejoy, é hoje superior a US$ 200 bilhões anuais. A oposição central à quebra de patentes vem dos EUA e da Suíça. É uma posição tão radical a das indústrias do setor que elas se têm recusado a aceitar a proposta da Organização Mundial de Saúde de receber, do único país que o conseguiu isolar, o vírus que transmite a gripe aviária de ser humano para ser humano – em troca do direito de aquele país fabricar a vacina (que ainda não existe) sem pagar royalties. Enquanto isso, o mundo corre o risco de uma pandemia.
No Brasil, o presidente da Associação Brasileira da Indústria Química (Abiquim) anunciou que o Instituto Nacional da Propriedade Industrial vai “rever as diretrizes de concessão de patentes” no caso de novas formas derivadas de produtos já patenteados e que caíram em domínio público ou não. Isso acontece no momento em que o Ministério da Saúde, por meio da Fundação Oswaldo Cruz, se prepara para lançar, nos próximos meses, um medicamento genérico de medicamento antiaids cuja patente foi quebrada por licenciamento compulsório. A redução de custo poderá chegar a 90%.
É uma questão antiga. No começo da década de 90, quando o Congresso brasileiro discutia um projeto de lei de propriedade industrial (que regula essa matéria), o então presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), Ennio Candotti, e o autor destas linhas, que era secretário do Meio Ambiente, Ciência e Tecnologia do Distrito Federal, tentaram, com discussões em comissões daquela Casa, modificar o texto, que tinha várias inconveniências, entre elas a de permitir reconhecer, aqui, patentes que já haviam caído no domínio público em outros países ou já estavam perto do prazo. Nada conseguiram. Nem mesmo com a simpatia declarada pelo então presidente Itamar Franco, que entregou o assunto a seu líder no Congresso. Mas este achava “oposição ao progresso da ciência” modificar o texto do projeto.
O tema está de volta. Inclusive porque o Ministério da Saúde considera prejudiciais artigos da lei que dificultam o acesso a certos medicamentos, muitos deles protegidos por aqueles dispositivos combatidos no início da década de 90 e afinal aprovados. Agora, anuncia-se que tão preocupado está o Ministério com o tema que o BNDES planeja criar uma “superempresa” de medicamentos, mediante fusões e associações, até com bancos – inclusive porque a importação de medicamentos e o pagamento de royalties estão “pesando no déficit comercial e no balanço de pagamentos do País”.
O segundo tema também está de volta com o protesto de cientistas, inconformados com a legislação que protege o conhecimento de comunidades tradicionais e exige seu consentimento para que cientistas possam pesquisar, a partir dele, a eficácia, por exemplo, de certas plantas na geração de medicamentos. É outro tema no qual o autor destas linhas se envolveu há uns poucos anos, de novo juntamente com o professor Ennio Candotti, que presidia mais uma vez a SBPC. Mas, reunidos cientistas, ambientalistas, antropólogos e representantes de ONGs que defendem direitos indígenas, não se conseguiu avançar. E o impasse se declarou no momento em que foi invocado um caso que hoje retorna ao noticiário: um cientista fechou acordo com 11 aldeias de uma etnia para pesquisar as propriedades de uma planta, dando a elas participação nos resultados financeiros; mas, na hora de assinar o acordo, três outras aldeias, da mesma etnia, a ele se opuseram e invocaram tratar-se de um conhecimento comum a todas as 14 aldeias. Como não há em sociedades desse tipo delegação de poder, sem o consenso não era possível o acordo. Representantes da comunidade científica na discussão não se conformavam e alegavam que estava sendo impedido o “avanço da ciência”. De nada adiantou argumentar que há organizações sociais e políticas diferentes e que é preciso reconhecer isso. Prevaleceu o impasse.
Talvez possa haver outro encaminhamento. Se a legislação dispuser que o acesso a esse conhecimento será livre, se não se transformar em rendimento financeiro, é possível que se possa avançar. No caso, o poder público, por meio das suas universidades e outras instituições públicas, terá de arcar com os custos da pesquisa, cujos resultados seriam de domínio também público. E dar às comunidades tradicionais a garantia de que também elas se beneficiarão com esse conhecimento. Quem sabe?
Washington Novaes é jornalista . E-mail: wlrnovaes@uol.com.br
Artigo originalmente publicado pelo O Estado de S.Paulo, 01/08/2008.
[EcoDebate, 04/08/2008]