Belo Monstro e o Xingu na Idade das Trevas, artigo de Rodolfo Salm
[Correio da Cidadania] Continua na imprensa a exploração do ataque dos Kayapó ao engenheiro da Eletrobrás no último protesto dos povos indígenas e movimentos sociais contra a construção da hidrelétrica de Belo Monte, em Altamira. A mais nova investida dos defensores dos projetos hidrelétricos no rio Xingu nesta batalha ideológica foi o artigo “Na base do facão” , de Mauricio Tolmasquim, presidente da Empresa de Pesquisa Energética (entidade vinculada ao Ministério de Minas e Energia que presta serviços na área de estudos e para o planejamento do setor energético), publicado este mês no jornal O Globo.
Vejam como foi longe a imaginação do executivo para produzir as distorções necessárias aos seus propósitos: “Como na Itália do século XVII, quando Galileu foi tolhido de suas atividades científicas ao ir de encontro às teses obscurantistas da Inquisição, no Brasil do século XXI engenheiros são impedidos de estudar – sim, estudar! – a viabilidade do potencial hidrelétrico por meio de liminares e práticas explícitas de violência. É o que ocorre com o projeto da usina de Belo Monte, no Pará”.
Além do ridículo da comparação, é bom que se repita que, no dia do ataque, o engenheiro não estava falando em “estudar” nada. Ele inclusive foi bem claro ao dizer aos índios que é bom que eles se acostumem com a idéia, porque a usina será construída de qualquer forma.
Conforme relatos, o Sr. Engenheiro Técnico da Eletrobrás desafiou, provocou e tentou humilhar as lideranças indígenas, com o autoritarismo dos que decidem a política energética praticada no Brasil, de cima para baixo, sempre desconsiderando a população local, no caso os povos indígenas e os ribeirinhos. A mesma postura tem Tolmasquim quando escreve que “Belo Monte terá sua barragem situada a 335 km da foz do Rio Xingu”. Se ele realmente pretendesse estudar a situação, pelo menos diria que Belo Monte “teria” a sua barragem situada em tal lugar, caso aprovada por tais estudos. A não ser que estes estudos já partam do pressuposto de que a barragem será construída de qualquer forma. Então é ele quem está atropelando a discussão e desrespeitando a lei, que exige estudos de impacto ambiental para avaliar a viabilidade das obras. Aqui sim, tal qual o tribunal inquisidor que julgou Galileu, a conclusão já está pronta de antemão. Não há a necessidade de ouvir o outro lado, já antecipadamente considerado errado e desconsiderado como agente com poder de influenciar a decisão final.
Tolmasquim exalta a potência projetada de Belo Monte (11,1 mil MW, ou 6,4% do consumo total de eletricidade do Brasil), e a “excelente” relação de MW gerado por área alagada. Argumenta que a grande maioria das áreas protegidas do Xingu, inclusive as terras dos índios Kayapó, se encontram distantes do local do empreendimento, portanto não sendo afetadas por ele. E prossegue com as promessas de desenvolvimento local, argumentando que Altamira será “amplamente beneficiada com obras de urbanização”.
Mas por que ele apresenta apenas dados estáticos sobre a potência da usina, sem comentar a questão da fortíssima sazonalidade climática do Xingu? É preciso que se repita sempre que aqueles valores de produtividade hidrelétrica serão válidos apenas para o período em que o rio encontra-se em seu nível mais elevado. Em boa parte do ano, quando o fluxo é extremamente reduzido, a usina seguiria operando em um nível mínimo.
Como seria resolvida esta limitação para que Belo Monte tenha o seu aproveitamento pleno para viabilizá-la economicamente? É aí que está o pulo do gato. No futuro, seriam construídos grandes reservatórios rio acima, estes sim que iriam desfigurar completamente o Xingu, substituindo suas corredeiras e praias de areia branca por um sistema de lagos inertes e muitas vezes pútridos.
Estes lagos gigantescos conteriam, na estação das chuvas, o excesso de água que hoje corre em imenso volume para o oceano nas épocas de cheia. Assim, em outros períodos menos chuvosos, esta água seria gradativamente liberada, de acordo com as necessidades de exploração hidrelétrica, viabilizando a usina o ano todo. Estes futuros lagos ficariam sobre as terras dos Kayapó e outras áreas protegidas do Xingu. E os índios sabem disso. Os defensores das hidrelétricas no Xingu escondem este “detalhe técnico” e fingem que Belo Monte será o único barramento do rio. Feito o primeiro, os outros seriam mais fáceis.
Tolmasquim afirma categoricamente ser infundado o “receio dos índios Kayapó em relação a mudanças significativas na qualidade da água” do rio. Mas como a água parada de um lago pode ser igual à de uma corredeira? Especialmente sob o ponto de vista dos peixes a diferença é total. Daí a preocupação, em todas as grandes hidrelétricas da bacia amazônica, com os famosos bagres que vivem no colo do Lula, tão importantes na alimentação dos povos desta região. Ao atravessar os grandes lagos das barragens, estes peixes são muito mais facilmente devorados por piranhas e outros predadores. O declínio dos bagres já ocorreu no município de Porto Nacional (TO), onde o rio Tocantins foi transformado em um lago com a construção da Usina Hidrelétrica Luís Eduardo Magalhães, segundo me contou uma professora de ecologia de peixes da Universidade Federal do Tocantins. Isso mostra que o temor dos Kayapó tem fundamento.
Aliás, Porto Nacional é um exemplo emblemático do desfecho das promessas de desenvolvimento subjacentes a estes projetos hidrelétricos, que se renovam agora em Altamira. Como escrevi ao Correio (em A divisão do bolo hidrelétrico), aquela região era cortada por um magnífico trecho do rio Tocantins, com cânions, corredeiras e belas praias que, durante boa parte do ano, atraíam visitantes das redondezas e até de localidades distantes, movimentando a economia local. Mas isso só até a construção da barragem, que afastou os turistas, que não gostaram das praias artificiais criadas à margem do lago, onde hoje latas e sacolas plásticas bóiam na água parada. E para piorar, de noite, a iluminação de Porto Nacional continua sendo deficiente e a cidade ainda é ironicamente escura.
Calcula-se que milhares de pessoas poderiam ser obrigadas a mudar-se da região de Altamira porque suas casas seriam cobertas pelas águas, ou elas seriam deslocadas pelas estradas e canteiros de obras que afetariam parte da cidade. Cidade, aliás, que também sofreria com a subida do seu lençol freático, dificultando futuros projetos de coleta, tratamento de esgotos (atualmente inexistentes) e seria cortada por um igarapé represado e, conseqüentemente, poluído. Um cenário que não me parece propriamente de desenvolvimento.
Altamira é uma cidade dividida quanto à questão da hidrelétrica. Segundo uma pesquisa de estudantes da Universidade Federal do Pará (UFPa), a maioria dos moradores com mais de 35 anos é a favor da construção da usina, enquanto a maior parte dos mais jovens é contra.
Os defensores espalham adesivos nos carros defendendo Belo Monte e levantam grandes outdoors com a imagem da barragem projetada. Pelos muros da cidade, os jovens chamam-na de “Belo Monstro” (obra da “Eletro-Morte“) , em grafites que são rapidamente apagados.
No meio da floresta mais preservada e encantadora do planeta, às margens do maravilhoso Xingu e livre das hidrelétricas, Altamira poderia transformar-se em um iluminado destino turístico internacional (assim como vem acontecendo com Santarém-PA, à beira do Tapajós.
Por outro lado, com a implementação das obras, a cidade será infectada pelas pestes que se proliferariam nas águas paradas dos igarapés represados como dengue, malária, esquistossomose e outras doenças dos trópicos subdesenvolvidos, arriscando ainda a permanecer escura, como é a realidade ignorada de várias localidades premiadas com o “desenvolvimento” impulsionado pelas hidrelétricas.
Rodolfo Salm, PhD em Ciências Ambientais pela Universidade de East Anglia, é pesquisador do Museu Paraense Emílio Goeldi.
[EcoDebate, 28/07/2008]