Ignorância e má-fé: um jogo de sete erros, artigo de Rogério Grassetto Teixeira da Cunha
[Correio da Cidadania] Foi publicado recentemente na Folha de São Paulo um artigo de autoria do físico Rogério Cezar de Cerqueira Leite, que também é membro do Conselho Editorial do jornal, sobre implicações ambientais relacionadas à produção de alimentos e biocombustíveis. O artigo tenta demonstrar ainda que os ambientalistas (seja da ala dos “ecoidiotas transnacionais” ou dos “verdolengos com e sem colete”, como ele nos classifica), com suas críticas ao etanol, estariam agindo por ignorância e/ou má-fé.
Ele parte do princípio de que estaríamos atribuindo ao aumento da produção de etanol da cana-de-açúcar o risco de competição com a produção de alimentos. Este é um exemplo claro de falácia “homem-de-palha”, que consiste em atribuir ao oponente um argumento fraco ou facilmente atacável, apesar de nunca ter sido realmente proferido ou defendido tal como se coloca. Assim, torna-se mais fácil o combate e a desmoralização do oponente. Apesar de haver pessoas que tenham utilizado o argumento da competição, está claro para boa parte dos ambientalistas que a alta nos preços dos alimentos é resultado de uma série de fatores complexos, em grande parte independentes do etanol.
Temos, sim, um enorme rol de críticas à monocultura de cana: trabalho em condições degradantes ou escravo, esgotamento do solo, mau controle do vinhoto, uso extensivo de queimadas, intimidação de comunidades locais no Nordeste, uso exagerado de agrotóxicos. Mas, sabemos que, pensando todo o Brasil, a cana-de-açúcar não compete globalmente com a produção de alimentos. Isto posto, pode haver alguma competição em nível local. Áreas de cana são monoculturas extensas, monótonas, e muitas vezes ocupam áreas de antigos sítios responsáveis por uma rica e diversificada produção de alimentos consumidos localmente. Com o seu fim, o preço de legumes, hortaliças e algumas frutas pode vir a aumentar.
O acadêmico parece ter gostado da falácia, tanto que a usa mais uma vez ao acusar a “mente mórbida” dos “ecofestivos brasileiros” de outro argumento: de que “a expansão da cultura da cana-de-açúcar estaria impelindo a soja para o norte, que, por sua vez, estaria empurrando o gado, que, como conseqüência, estaria invadindo a floresta amazônica”. Ele argumenta que, mesmo se dobrássemos a área plantada com cana, isto teria um impacto muito pequeno sobre a pecuária (que ocupa uma área trinta vezes maior) e que, portanto, não seria um motor para a expansão da mesma.
Sabemos muito bem que o raciocínio criticado realmente não corresponde à realidade e que o desmatamento na Amazônia tem mais a ver com um ciclo de madeira e pecuária, com contribuição da soja. Porém, as expansões da cana e do desmatamento podem estar relacionadas devido a mecanismos mais complexos. Com a venda ou o arrendamento de terras nos locais de expansão da cana-de-açúcar (São Paulo, Mato Grosso do Sul, Paraná, Minas Gerais e Goiás), os fazendeiros podem mudar-se para a Amazônia. Como a terra por aqui é muito mais cara que lá, eles podem comprar uma área muito maior, para então aplicar os tradicionais métodos de pecuária ou agricultura na Amazônia. Tememos ainda que a cultura da cana-de-açúcar venha a ampliar-se na própria região e somar esforços com as outras forças destruidoras.
O artigo prossegue com uma série de cálculos bastante simplórios, que reduzem o complexo debate a meia dúzia de dados, para concluir que uma área plantada de 800 milhões de hectares seria suficiente para alimentar toda a humanidade. Com mais 300 a 400 milhões, diz ele, poderíamos ainda abastecer o mundo com etanol suficiente para substituir totalmente os combustíveis fósseis. Citando a FAO, diz que atualmente são cultivados 1,5 bilhão de hectares e que haveria mais 3,5 bilhões disponíveis. Disto tudo, ele conclui não ser necessário “ampliar a área cultivada para suprir a humanidade de toda a comida e energia de que precisa hoje e precisará no futuro, mesmo que o consumo de energia dobre e a população do globo atinja o limite superior”. Aqui, todo seu raciocínio parece um “jogo dos sete erros” (propositais?):
1. Usar como base um consumo per capita de 2.000 kcal/dia, quando ele já está por volta de 2.800 kcal/dia e também tende a crescer com o aumento de renda mundial.
2. Considerar na análise somente a área de grãos necessária para a produção de carne. Apesar de válido para a produção industrial de frango, porcos e gado confinado, tal raciocínio não vale para todos os casos. Em diversos países, os animais são criados no pasto, com produtividade bem mais baixa. Num cálculo rudimentar, a produtividade média de carne bovina no Brasil é de aproximadamente 45 kg por hectare/ano.
3. Omitir da análise a perda anual de terras agricultáveis, bem como os impactos negativos que o aquecimento global terá sobre a produtividade agrícola. Combinados, estes três “erros retóricos” aumentariam sobremaneira as estimativas de Cerqueira Leite sobre a área do planeta necessária à produção de alimentos. Evidentemente, tirando para isso espaço das florestas e savanas naturais. Na verdade, ele confunde o leitor com sua dança de números, pois “esquece” de mencionar que a mesma FAO soma, à área de 1,5 bilhões de hectares plantados, cerca de 3,5 bilhões de área de pastagens. Portanto, já temos 5 bilhões de hectares alterados.
4. Assumir, para chegar às suas conclusões, altas produtividades no campo. Utilizar tais valores para todas as terras cultiváveis, estejam onde estiverem, é um grave equívoco, pois variações de solo, precipitação, incidência de sol, entre outras, impedem que os índices sejam obtidos em todos os locais. Assumir tal pressuposto significa abrir mão de vez da agricultura de pequenas propriedades e familiar (socialmente muito mais justificáveis e as grandes geradoras de empregos no campo), para focar apenas no modelo de enormes monoculturas mecanizadas e intensivas em insumos (adubos e agrotóxicos), modelo que, a longo prazo, tende a não ser sustentável. Isto leva a mais expulsão de pessoas do campo (com as conseqüências conhecidas), pois esta modalidade é muito menos intensiva em mão-de-obra.
5. A lógica da produção e do consumo de alimentos no mundo não se resume às simples contas apresentadas. Atualmente, já produzimos alimentos em quantidade suficiente para alimentar a todos de forma razoável. Mas ele sabe muito bem (ou pelo menos deveria saber) que as desigualdades sociais e econômicas impedem o acesso justo. E não há perspectivas no curto prazo de solução deste problema. As soluções que ele propõe baseiam-se justamente na premissa que gera a situação atual: enxergar a produção de alimentos sob uma ótica exclusivamente economicista e a produção de biocombustíveis para manter o atual modelo de sociedade. Ou seja, ele sugere dar mais veneno ao doente. Quinto erro. E dos crassos.
6. Ao considerar a produção de alimentos como uma simples conta global de produção e consumo, ele “esqueceu-se” de que há diferenças populacionais entre países, e que alguns são importadores líquidos de alimentos, enquanto outros (Brasil, por exemplo), são exportadores. Omitiu ainda que, por possuirmos características naturais e sociais favoráveis, nos está reservado pela estrutura de poder mundial cada vez mais o papel de celeiro, pasto e bomba de combustível do mundo. Isto é grave do ponto de vista ambiental, pois significa a destruição de mais ambientes naturais.
7. Desconsiderar que as decisões sobre como, onde e o quê plantar e criar não são tomadas levando-se em conta aspectos ambientais ou de suprimento de alimentos à população. O lucro, de preferência o mais rápido possível, e a produtividade são os principais guias. Somado ao beneplácito implícito (ou explícito) dos governos e à falta de fiscalização, o resultado é conhecido: desmatamento e degradação ambiental crescentes. Ligado a isto está o fato dele considerar as possíveis terras cultiváveis adicionais (os tais 3,5 bilhões de hectares) exclusivamente sob a ótica humana. É o planeta Terra servindo apenas a uma espécie, a nossa, esquecendo-se que as terras não estão lá, esperando para ser plantadas. Na verdade, uma parte desta área são ecossistemas naturais que, no entanto, realizam uma série de serviços à humanidade, e à própria agricultura inclusive.
Os seus argumentos, da forma como foram colocados, soam como música para o setor ruralista brasileiro, para as grandes agroindústrias (cada vez menos nacionais) e, de quebra, para todos aqueles que consideram os ambientalistas como entraves ao desenvolvimento. Seria o caso de perguntar: qual a intenção do eminente cientista com um texto tão cheio de equívocos?
Rogério Grassetto Teixeira da Cunha, biólogo, é doutor em Comportamento Animal pela Universidade de Saint Andrews.
E-mail: rogcunha@hotmail.com
Artigo enviado pelo Autor e originalmente publicado pelo Correio da Cidadania
[EcoDebate, 24/07/2008]
Professor Doutor Rogério Grassetto, queria multiplicá-lo por 1000 ou mais, ao mesmo tempo em que queria subtrair todas as mentes iguais a deste cientista de palha. Ele esquece totalmente da degradação humana e ambiental no artigo, esquece da concentração de renda e injustiças sociais, esquece das peculiaridades regionais, enfim, é mais um daqueles seres “OCOS” produzidos dentro de uma não-realidade e dentro de uma intelectualidade duvidosa.