Povos indígenas, história e democracia, artigo de Paulo Maldos
“Em agosto, o Supremo Tribunal Federal (STF) poderá julgar a ação que questiona a demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima, feita pelo governo Fernando Henrique e homologada e registrada pelo governo Lula. Fruto de 34 anos de luta dos povos indígenas e da solidariedade de movimentos sociais e entidades civis, a demarcação vem sendo contestada por seis fazendeiros invasores e seus aliados políticos e militares“, escreve Paulo Maldos, assessor político do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), em artigo publicado no jornal Valor, 18-07-2008.
Segundo ele, o julgamento do STF será “emblemático, seu resultado dirá se nós, como nação, iremos continuar avançando na construção democrática de um futuro diverso e plural, baseado no respeito às diferentes culturas e formas de existência, expressas no rico patrimônio dos povos indígenas, ou se iremos regredir e voltar à perspectiva colonial e, pior ainda, da ditadura militar, com seu horizonte fechado à diversidade, marcado pelo preconceito. No limite, apontando novamente para o etnocídio, em pleno Século XXI”.
Eis o artigo.
Por mais de 400 anos, os povos indígenas no Brasil sofreram o processo colonizador como vítimas e, eventualmente, como aliados para a defesa do território nacional frente aos diferentes invasores. O domínio das terras e caminhos, das matas e rios, o conhecimento milenar da natureza tornava-os imprescindíveis à empresa colonial e, ao mesmo tempo, objeto de desrespeito, exploração e questionamento da própria humanidade.
Essa relação contraditória caracterizou a fase inicial de nossa história, perpassando o Império e boa parte da República. A inspeção das fronteiras nacionais até os anos 1930 e a instalação de linhas telegráficas no oeste brasileiro, realizada pelo marechal Cândido Rondon, teria sido impossível sem a contribuição dos povos indígenas e a relação digna estabelecida pelo militar com estes, o que viabilizou a consolidação do território nacional.
O processo econômico de ocupação territorial, no entanto, sempre foi impiedoso e, enquanto ocupava terras no seu caminho, subjugava povos, identidades, culturas e modos de existência. A ocupação do litoral e Sul do país pelos imigrantes europeus foi realizada com o sacrifício de inúmeros povos milenares, e da mesma maneira ocorreu a expansão das fronteiras econômicas no rumo do Oeste, Norte e Centro-Oeste. A tensão e a contradição, portanto, sempre ocorreram, e em todas as frentes de expansão, alternando-se guerras com colaboração; insurreições com “doações de terras” pelo Império aos índios; enfrentamentos com demarcações; subjugação cultural com intensas trocas culturais.
Na esteira de quase cinco séculos da construção nacional, centenas de povos desapareceram, milhões de indígenas morreram e avançamos no Século XX com uma visão precária e contraditória do que havia restado das populações originais desta terra, numa mistura de fascínio, ignorância e desprezo. A intelectualidade e os artistas fizeram o reconhecimento e o elogio das nossas raízes indígenas na Semana de Arte Moderna de 1922, mas essa visão de vanguarda não chegou a referenciar as condutas das frentes de expansão, que mantiveram o padrão colonial de dominação e expropriação.
O período desenvolvimentista dos anos 50 produziu as estratégias – como a criação do Parque Nacional do Xingu – de remoção e reassentamento territorial de diferentes povos, para protegê-los na mesma medida em que se lhes subtraía o território e se lhes confinava nas sobras da expansão econômica e nos corredores entre as novas estradas que rumavam para o interior.
A ditadura militar acelerou o processo de espoliação dos povos indígenas, expondo brutalmente suas frágeis existências ao ciclo voraz do capital, incentivando a ocupação desordenada da região amazônica e disseminando doenças, morte e miséria nas aldeias indígenas. A ditadura quebra a relação contraditória vigente desde a colônia entre o Estado nacional e os povos indígenas para anunciar com radicalidade o etnocídio como “o preço a pagar pelo progresso”. Buscava-se a integração dos povos indígenas sobreviventes à sociedade nacional como a vitória final de um Brasil branco e homogêneo.
Como toda a sociedade nacional, também os povos indígenas se mobilizaram durante o último período da ditadura: assembléias, denúncias, ações coletivas passaram a ocorrer com intensidade crescente, reivindicando terras, afirmando culturas, cobrando respeito. “Brasil, Nunca Mais” deixava de ser uma aspiração restrita aos grupos que lutavam pela Anistia, para ser abraçada por todos os setores sociais, inclusive os povos indígenas.
O Congresso Constituinte (1987-1988) foi o espaço pós-ditadura no qual o conjunto da sociedade brasileira se encontrou para construir um novo pacto político e social. Ali foi transformada radicalmente a orientação do Estado com relação aos povos originários: de uma perspectiva integracionista, que pressupõe a superioridade da sociedade nacional frente às sociedades indígenas, passamos a uma perspectiva de respeito à alteridade, que pressupõe a igualdade de direitos entre os diferentes modos de existência no interior do Estado-nação.
A Constituição de 1988 afirma no artigo 231: “São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”.
Ao longo dos últimos 20 anos, a sociedade brasileira vem buscando cumprir, embora de maneira muito lenta, esse novo mandato constitucional: várias terras indígenas foram demarcadas em todas as regiões do país; políticas públicas diferenciadas em saúde e educação vêm sendo experimentadas; um novo Estatuto dos Povos Indígenas foi proposto ao Congresso Nacional; a Comissão Nacional de Política Indigenista foi criada pelo atual governo; vem sendo exigida proteção para os povos indígenas ainda não contatados (cerca de 70) na Região Amazônica. Há muitíssimo por fazer, mas o que foi feito, o foi dentro dos novos marcos constitucionais.
Por parte dos 235 povos indígenas também muitas mudanças ocorreram, alicerçadas nesses mesmos marcos: comunidades indígenas participaram ativamente na demarcação de suas terras; povos que estavam morrendo voltaram a crescer; o conhecimento tradicional da flora, da fauna, das maneiras próprias de compreender saúde e educação, tem sido valorizado e aplicado; povos, principalmente do Nordeste, que exerciam suas culturas clandestinamente, voltaram a se expor por inteiro e com orgulho, retomando memórias e territórios ancestrais; comunidades indígenas urbanas se revelam em todo o país, reafirmando valores e culturas, em permanente intercâmbio com as aldeias e com a sociedade nacional. Avalia-se que o total da população indígena hoje pode chegar a um milhão de pessoas, numa taxa de crescimento superior à média nacional.
Em agosto, o Supremo Tribunal Federal (STF) poderá julgar a ação que questiona a demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima, feita pelo governo Fernando Henrique e homologada e registrada pelo governo Lula.
Fruto de 34 anos de luta dos povos indígenas e da solidariedade de movimentos sociais e entidades civis, a demarcação vem sendo contestada por seis fazendeiros invasores e seus aliados políticos e militares.
Julgamento emblemático, seu resultado dirá se nós, como nação, iremos continuar avançando na construção democrática de um futuro diverso e plural, baseado no respeito às diferentes culturas e formas de existência, expressas no rico patrimônio dos povos indígenas, ou se iremos regredir e voltar à perspectiva colonial e, pior ainda, da ditadura militar, com seu horizonte fechado à diversidade, marcado pelo preconceito. No limite, apontando novamente para o etnocídio, em pleno Século XXI.
(www.ecodebate.com.br) publicado pelo IHU On-line. 18/07/2008 [IHU On-line é publicado pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, em São Leopoldo, RS.]
[EcoDebate, 19/07/2008]