Para salvar a Amazônia, artigo de Sérgio Abranches
Mais que nunca é indispensável mobilizar a inteligência e capacidade científica nacionais
[Scientific American Brasil] Quem vai à Amazônia não tem dificuldade para identificar as áreas sem exploração comercial, que no passado foram desmatadas para formar pastagens ou campos de cultura. Se for até a região madeireira verá as serrarias de baixa produtividade gerando mais pó de serra e lasca de madeira que as tábuas que comercializam para uso banal. Poderá ver os fornos onde é queimada a serragem, para desentulhar os pátios, que poderia estar, no mínimo, gerando energia. Quem se aventurar por uma das sinuosas estradas que formam uma segunda malha rodoviá-ria informal na região – até 2001, só no centro-oeste do Pará, segundo pesquisa do Imazon, ultrapassavam os 20 mil km de extensão – pode dar com os fornos de carvão. Neles, resíduo de madeira e madeira de desmatamento são usados para fazer carvão para as usinas de ferro-gusa, principalmente da região de Carajás e de Marabá. A Amazônia tem um miolo de economia do desperdício e de baixa produtividade que a está devorando.
Acompanhei recentemente ações da operação Arco de Fogo, do Ibama e da Polícia Federal, em Paragominas, oeste do Pará, na Belém-Brasília. Vi a autuação e multa de uma serraria, com madeira ilegal, cortada de forma predatória, processada do modo mais ineficiente possível. Vi a destruição de fornos de carvão sem licenciamento, outro exemplo de atividade de baixo valor e com trabalho degradante. A operação havia derrubado mais de 400 fornos de carvão ilegais nos poucos dias em que estava em Paragominas. Em Tailândia, de onde os agentes haviam saído, foram destruídos 1.400.
Só em uma das fotos que tirei no pátio repleto de toras, contei 503. Muitas delas de árvores que, pelas regras do manejo científico, teriam ficado em pé, como matrizes, por causa de seu baixo aproveitamento madeireiro. Cortadas com o cipó enganchado em sua copa, derrubam outras 25. Logo, só aquelas 503 que contei numa foto representavam 1.325 árvores no chão: 822 ficaram para trás para apodrecer ou serem queimadas. Andei numa montanha de serragem, com 5 metros de altura por aproximadamente 50 metros de comprido. Atrás desse monte, vi uma pilha de pouco mais de 4 metros de refugo de madeira. Comparando-se com as pranchas estocadas no galpão, dava para ver que havia mais resíduo que produto final.
Tudo serve de álibi para abrir, a ferro e fogo, novas clareiras em um dos principais patrimônios florestais tropicais que existem: 40% do que resta de floresta tropical no mundo. A desordem fundiária, obra das omissões do Incra, está na ponta da língua de todos. A ausência do Estado e a falta de políticas para a região, também. A demanda por trabalho explica qualquer absurdo. Até o sonho do eldorado, inesgotável no imaginário brasileiro, mas ameaçado de extinção pela mancha de corte raso e fogo que vai se alastrando pela Amazônia, é a justificativa. Na verdade, destruímos riqueza, sem gerar benefício sequer equivalente. Não faz sentido econômico: destrói-se mais valor do que se cria com a produção.
Difícil é salvar a floresta. Sua salvação requer o contrário do que se usa para destruí-la: sofisticação, conhecimento, ciência, tecnologia, boas práticas e boa governança. Há base científica para o bom manejo florestal. Mas não há condições de governança para garantir sua aplicação. A tecnologia de sensoriamento remoto e interpretação de seus dados permite hoje implantar o zoneamento econômico-ecológico com régua e compasso. Falta autoridade para isso.
Não sabemos ainda quanto existe nela de biodiversidade para ser aproveitada, com a floresta em pé, para fins nutricionais, medicinais, cosméticos e outras aplicações econômicas. Precisamos aprender mais e muito rapidamente sobre esse patrimônio, para podermos formular uma agenda que desenvolva a Amazônia, interrompendo sua destruição. A agenda de hoje, concebida nos anos 70 pelos militares, para ocupar e abrir a fronteira agrícola do Norte, é destrutiva. Hoje conhecemos bem seu clima, sua hidrologia e sua macroecologia. Precisamos dominar sua biologia econômica, para salvá-la do avanço da economia do desperdício e da destruição. A saída para a Amazônia está na ciência, na tecnologia e na capacidade da sociedade brasileira de escolher protegê-la, valorizá-la e criar os mecanismos institucionais de governança, acabando com os álibis e a impunidade. Sem alternativas econômicas compatíveis com a manutenção da floresta em pé vamos ficar sempre no círculo vicioso da repressão circunstancial e do desmatamento sistemático. É preciso mobilizar a inteligência e a capacidade científica nacional para formular uma nova agenda de desenvolvimento para a Amazônia
Sérgio Abranches É sociólogo, colunista de O Eco e comentarista do CBN-ecopolítica.
Artigo originalmente publicado pela revista Scientific American Brasil, julho 2008