Como seria se, fatalmente, não houvesse amanhã? artigo de Carlos R. Spehar
[EcoDebate] Tema atual, as ameaças, decorrentes da voraz ação humana sobre os biomas terrestres são abordadas com freqüência. A vida pululante, que parece infindável, de tantas nuances que apresenta, a base de tudo que o ser humano conquistou, está, mais do que nunca, subjugada, sob forte ameaça. Como reportado recentemente, não há um lugar, no planeta Terra, por mais inóspito, que não tenha sofrido ação antrópica, predadora ou não.
Esta geração, a que passa dos 60 anos, é testemunha da ação desenfreada, como se resultasse do estouro de uma boiada – só que humana, se a comparação é válida!
Não faz muito tempo, a Amazônia era chamada de “inferno verde”, de tão hostil à presença de humanos – daqueles que iam desguarnecidos, sedentos de poder em ambiente de tanta vida. Era uma série de doenças tropicais a dizimar, como por seleção natural, intrusos despreparados. Parecia que ficaria lá para sempre intocada, como lepra verde!
No trabalho como mensageiro em uma grande indústria de São Paulo, há quase 50 anos, me vêm à memória diálogos mantidos com um amigo economista. Sonhava soluções para a gritante miséria brasileira, em especial a do Nordeste. Mal sabia, simplista no idealismo, que a maior miséria a nos assolar decorria da falta de moral e ética; de ambição desenfreada, buscando lograr êxito a qualquer custo, um esforço de conquista, como se vivêssemos mais de uma vida. Esse é o vício, resquício colonialista que tem persistido no Estado e, contaminando a nação, talhado a atender interesses de grupos, em detrimento da maioria. Torna-se o ser mais bruto, do que palavras descrevem, espreitando, a rapinar oportunidade. Pois, assim era no princípio, quando da empreitada dos conquistadores.
Ingênuo, supunha que se pudesse resolver os problemas com boa vontade. A cada solução, o economista me perguntava: “De onde sairá o dinheiro para desenvolver esse plano?”.
Assim era com o sertão nordestino, castigado por secas. Furar poços, buscar água das profundezas, construir barragens dependia de capital e do manejo apropriado do recurso. Aqui é que apareciam os obstáculos. Ou seja, quem teria acesso à água? As ações seriam eqüitativas, de oportunidade? “Isso é utopia”, dizia o economista destruidor de sonhos
Do ponto de vista agronômico, o uso da água tinha de ser estratégico, sob pena de causar mais dano do que consolidar as vantagens iniciais. Salinização era conseqüência desastrosa sobre empreendimentos de verde esperança. Quando a Amazônia era o foco, aí sim é que o colega economista podava as idéias de vez! Propunha que se abrissem clareiras, em áreas-piloto, para a exploração, hoje chamada de sustentável. Ou seja, combinação de extração de alguns espécimes de árvores para madeira, cultivo de espécies florestais em sistemas de consórcio, apoiando a sobrevivência do povoador. De forma organizada, como raro ocorre.
A questão era sempre a mesma: os recursos. Vale lembrar, há 50 anos, o Brasil era conhecido no exterior pelo café e o açúcar, os grandes produtos da pauta de exportações. No restante, éramos importadores de quase tudo, até mesmo arroz-e-feijão, a unanimidade nacional. Como não movimentava grandes quantidades de capitais, também não dispunha de créditos internacionais. Mesmo se os houvesse, havia desvios, como tem acontecido..
Portanto, quer se tratasse da Amazônia ou da Caatinga, a solução era complexa, exigia capital e, mais do isso, lisura na aplicação dos recursos, depois de tudo planejado – outra utopia que relutava aceitar! O Cerrado, tão pouco mencionado naquela época, parecia um intervalo vazio entre biomas. Veja-se como era limitado o conhecimento de então!
Entretanto, gradativamente, o cenário mudou. Em 1960, com a criação de Brasília, o Cerrado tornou-se conhecido no restante do país. Mais ainda, passou a ser cobiçado, por suas imensas áreas planas, como infindáveis mesas, cobertas por vegetais exóticos.
Com a escassez de terras férteis no sul e sudeste brasileiros, o Cerrado passou à condição de fronteira agrícola. Se o houvesse visitado, Pero Vaz de Caminha teria escrito ao rei de Portugal “é uma terra boa e generosa; em se adubando, tudo dá”. Ainda que os solos fossem desprovidos de nutrientes e ácidos, não tardou para que se desenvolvesse tecnologia direcionada a “construir” fertilidade. Com manejo de solo e de planta, selecionaram-se variedades adaptadas ao ambiente. Eis aqui a ação humana. No meio do nada, distante dos recursos e infraestrutura, chegavam os forasteiros. Vinham na esperança de melhorar a condição de vida. Partia-se da utopia à realidade, obviamente não como se imaginava.
Então, o Cerrado se assemelhava ao Oeste Americano, onde todos acorriam à busca do ouro, neste caso, verde. A soja que se incluiu entre os grandes produtos agrícolas brasileiros, a partir dos anos 1970, passou a cobrir imensas áreas, como tapete, além do horizonte. Abriu caminho para cultivos solitários, como milho, algodão, feijão e arroz.
Enfim, de importador de alimentos, o país se tornou exportador deles e de seus derivados.
Como instrumento da grande ambição, máquinas potentes passaram abrir áreas virgens, como gafanhotos gigantes. Manchas pouco expressivas, como relíquias, são testemunhas.
Então, a vida exuberante do Cerrado, ainda que não aparentasse, era alterada em profundidade. As ameaças de há 50 anos são hoje assunto para relicário. Viraram lenda! Portanto, quem for desse período, e ainda está vivo é como um peixe das profundezas do mar, que já existia na época dos dinossauros: um verdadeiro fóssil vivo.
A impressionar, estão os números. Um agricultor moderno pode realizar o trabalho de 1.000 daqueles que viviam em agricultura de subsistência e extrativismo. O poder de fogo aumentou de forma assustadora A abertura de áreas virgens virou rotina e proliferou como praga incontrolável.
A voracidade, vista pelo ângulo econômico, tenta se justificar como: “O Cerrado, com suas árvores tortas não serve para nada; o extrativismo não sustenta grandes populações; a subnutrição e miséria precisam ser combatidas com alimentos abundantes e baratos; soluções tecnológicas e criatividade humana resolvem os problemas decorrentes. Simples!
Porém, nem todos terão solução, pelo menos no prazo que precisamos para reverter alterações, como as do clima e da perda, para sempre, de espécies.
O que parece inútil, como as plantas de aparência triste, é fruto de equilíbrio. Indica como funciona o Bioma Cerrado, no qual interferimos, muitas vezes atirando no escuro. Essa diversidade apresenta material genético único que se perde com ações pouco planejadas. O que sobrar pode nem refletir tal diversidade, pois, em geral, reservas são mantidas em áreas pouco representativas, cujas espécies são igualmente únicas, a ocupar nichos.
Estendendo o raciocínio para outros biomas nacionais, na África e Ásia, alvo da sanha humana, o que se prenuncia é mais do que “primavera silenciosa”, de há 40 anos, sobre panacéias para combater pragas, como DDT e BHC. No controle da perda de diversidade, não há lei que impeça; em área de fronteira agrícola, ordem e justiça nada valem!
E o amanhã como fica? Se parássemos para imaginar que há soluções, não aquelas simplistas; que vale a pena falar até esgotar o assunto; que a união de pessoas influentes e de boa vontade pode sensibilizar populações; que exemplos podem ser seguidos e melhorados, talvez se evitem catástrofes. Como visualizado em Gaia, novas formas de equilíbrio surgirão, mesmo depois do amanhã. Pois, como tudo é relativo, o desaparecimento humano significa apenas o fim do nosso futuro.
Carlos R. Spehar, Professor da Universidade de Brasília