Estamos experimentando uma escassez de água sem precedentes, artigo de Luis Miguel Ariza
“Mais de 1,2 bilhão de pessoas não tem acesso a água potável, e cerca de 2,4 bilhões sofrem doenças originadas da ingestão de água insalubre. Na próxima meia hora morrerão 180 crianças em países em desenvolvimento justamente por conta da água contaminada”, escreve Luis Miguel Ariza.
“O que estamos experimentando é uma escassez mundial sem precedentes”, afirma Stephen Carpenter, professor de Zoologia da Universidade de Wisconsin, em Madison, e presidente da Sociedade Ecológica da América. Portanto, nos encontramos numa situação dramática em termos de acesso à água potável no planeta.
Segue a íntegra do artigo de Luis Miguel Ariza, publicado no El País, 08-06-2008. A tradução é do Cepat.
Quatro milhões de crianças morrem anualmente porque o elemento que lhes dá a vida, a água, está contaminada. O ser humano é água. E a Terra é o planeta azul, mas cada vez menos azul. Às vésperas da abertura da Expo Zaragoza, líderes mundiais como Gorbachov, Susan George, Vandana Shiva e Jeremy Rifkin, nos dão as chaves de uma crise mundial.
A Faixa de Gaza é um dos lugares mais densamente povoados do mundo. Mais de um milhão e meio de palestinos convivem num corredor de terra árida que tem apenas 40 quilômetros de extensão e entre 6 e 12 de largura. A água vital de que dependem desde tempos bíblicos corre debaixo de seus pés graças a um aqüífero subterrâneo que se estende por cerca de 120 quilômetros ao longo da costa mediterrânea. Gaza é uma zona em permanente conflito, mas há talvez um aspecto mais desconhecido da vida dos palestinos.
“Em termos de contaminação da água, sua situação é provavelmente das piores do mundo”, explica Andy Vengosh, professor associado da Divisão de Ciências da Terra e do Oceano da Universidade de Duke, em Durham (Carolina do Norte, EUA). Vengosh diagnosticou a saúde das águas subterrâneas nessa faixa, e, com exceção de alguns poços contaminados por nitratos ou resíduos, chegou à conclusão de que a maioria expele água cada vez mais salgada. Os mais velhos do lugar lembram de tempos em que a água tinha um gosto muito mais doce. Num trabalho publicado na revista Ground Water, Vengosh conclui que menos de 10% das águas subterrâneas ingeridas em Gaza são aptas para a saúde para uma população em que mais da metade são menores de 15 anos.
Em Gaza, como em Israel e todo o Oriente Próximo, chove pouco; e mais população significa mais água. Com o tempo, os recursos subterrâneos se vêem condenados à superexploração. Os palestinos extraem anualmente 150 milhões de metros cúbicos destes poços insalubres, uma quantidade que é 10 vezes maior que a bombeada pelos israelenses da parte mais suloriental do aqüífero. O certo é que a hidrogeologia não favoreceu Gaza. A conclusão a que Vengosh chegou é que a salinidade dos poços não se deve às intrusões do Mediterrâneo, mas que é produzida devido a um fluxo de águas salgadas subterrâneas que fluem fundamentalmente de Israel até a costa. “A origem é natural”, assegura este especialista. “Não se deve à contaminação humana feita em Israel nem a nenhuma outra atividade. O que propusemos neste estudo foi a criação de uma linha de poços que bombeassem esta água salgada para enviá-la a uma estação dessalinizadora, de forma que se pudesse reverter este processo e fazer com que chegue mais purificada à Faixa de Gaza.
Uma estação dessas, funcionando na fronteira entre Israel e os territórios palestinos e administrada por ambos, poderia mudar totalmente a vida diária dos palestinos, que desfrutariam de uma água de qualidade sem precedentes. “Alguns acreditam que a água pode ser uma causa para os conflitos, já que, por ser escassa, se organizam guerras em torno de seus recursos”, disse Vengosh. “Outros pensamos que a água pode servir como um instrumento para estabelecer a cooperação”.
Os conflitos pela água não são nenhuma novidade, nos lembra Michael Coe, professor do Instituto Oceanográfico Woods Hole, em Massachusetts (EUA): basta lembrar a disputa entre a Turquia e seus vizinhos Iraque e Síria pela represa turca de Ataturk para controlar o fluxo do Eufrates, ou “as ameaças do Egito sobre os planos do Sudão de construir uma represa no Nilo para irrigação, o que reduziria de forma significativa o fluxo de água para o Egito”. Aí estão também as conversações pela paz que iniciaram no mês passado Israel e Síria, e que se centram sobre os altos do Golan e no acesso à água.
Gaza não é mais que um expoente – dramático – de uma crise mundial. Os dados dão pinceladas temíveis: mais de 1,2 bilhão de pessoas não tem acesso a água potável, e cerca de 2,4 bilhões sofrem doenças originadas da ingestão de água insalubre. Na próxima meia hora morrerão 180 crianças em países em desenvolvimento justamente por conta da água contaminada.
A alimentação e a água são outro assunto grave. 10% de todos os alimentos no mundo, a carne e os cereais, são produzidos graças à extração de águas subterrâneas de aqüíferos que estão se esgotando a um ritmo mais rápido do que podem ser recuperar. A irrigação na agricultura consome 75% da água no mundo e proporciona 40% dos alimentos, explica Coe. Mas no norte da China, Índia, no norte da África, Ásia central, na parte central dos Estados Unidos, no norte do México e da Austrália, os níveis freáticos baixam entre um e dois metros a cada ano. “Em certas partes da Índia central, os moradores podem ficar sem água subterrânea na próxima década ou na seguinte. É um caso crítico”, disse Coe.
Nas escolas se ensinava que a água de nosso planeta se renova, e alguns cálculos sugerem que cada ano os oceanos evaporam a inconcebível quantidade de 495.000 quilômetros cúbicos de água; mas praticamente nada se perde no espaço, e essa água retorna para se incorporar num circuito sem fim: o próximo copo de água que você beber pode, em teoria, conter moléculas de água que podem ter sido ingeridas por Napoleão.
Os mares cobrem duas terças partes da superfície do Planeta – 97% da água é salgada –, e o resto é água doce, que se encontra nas calotas polares, nas águas subterrâneas, nos rios e lagos. O problema é que temos acesso a menos de um 1% de toda a água doce existente. Segundo o Conselho Mundial da Água, no século passado, a população triplicou, mas o uso de águas renováveis se multiplicou por seis. Stephen Carpenter, professor de Zoologia da Universidade de Wisconsin, em Madison, e presidente da Sociedade Ecológica da América, explica-o dessa maneira: “Agora há muito mais pessoas do que nunca e, além disso, a média de consumo por indivíduo nunca foi tão alta”. Se acrescentarmos que agora não há mais água disponível como no passado, e que a contaminação está arruinando muitos recursos hídricos e reservas de água doce que antes estavam disponíveis, a conclusão é evidente: “O que estamos experimentando é uma escassez mundial sem precedentes”.
A tecnologia de tratamento de água nos países desenvolvidos permite paliar em parte o problema, tornando potáveis águas poluídas ou dessalgando a água do mar. Isso ocorre na Europa, nos Estados Unidos e nos países mais prósperos do Oriente Próximo, que podem destinar recursos financeiros derivados do petróleo para este fim. “O problema é mais inquietante nos países pobres, já que não dispõem desta tecnologia para produzir água potável. Há um bom número de organizações que trabalham nestes países para desenvolver procedimentos de potabilização de baixo custo, mas a situação é complicada”, assegura Kenneth Reckhow, professor de Recursos Hídricos da Universidade de Duke.
Na Espanha, o estresse hídrico afeta, sobretudo, o sul da Península, Levante e a costa catalã. Os números dizem que a Espanha é um país chuvoso em comparação com outros, o que resulta a priori chocante. “A média de chuvas na Espanha é das mais altas, cerca de 660 litros por metro quadrado”, disse Fermín Villarroya, professor de Hidrogeologia da Universidade Complutense de Madri. “Ocorre que é uma média enganosa resultante da divisão de muitos litros que caem na Cornija Cantábrica e os poucos que chegam ao sudeste”. Esta desigualdade pluviométrica poderia explicar o costume histórico do Estado espanhol de levar água de um lugar a outro. A radiografia hidrológica apresenta a Espanha como o terceiro país no mundo em número de represas (cerca de 1.300), um devorador anual em torno de 30.000 hectômetros cúbicos de água doce – não necessariamente potável – e cuja agricultura consome 85% dos recursos.
A grande questão a ser resolvida, assegura Villarroya, é a gestão das águas subterrâneas, que regam um terço dos cultivos espanhóis. Não há um controle suficiente sobre os poços; há casos evidentes de superexploração, como o do aqüífero 23 da Mancha, que colocou à beira do abismo o Parque Nacional das Tablas de Daimiel. Além disso, na Espanha a água continua sendo barata. “Atualmente, é mais rentável bombear um metro cúbico de água subterrânea do que comprar um metro cúbico numa estação dessalinizadora”.
A Diretiva Européia da Água, de 2000, estabelece que, a partir de 2010, os espanhóis terão que começar a pagar o preço real da água que usamos e bebemos – atualmente é de um euro por mil litros –, o que suporá provavelmente duplicá-lo ou triplicá-lo no futuro. Atualmente, o preço mínimo da água é subvencionado pela maioria dos ajuntamentos. Villarroya acredita que uma água mais cara, junto com medidas de reutilização e fomento da economia de água, nos levará a um uso sustentável.
E hoje esse caminho passa, como não poderia deixar de ser, por Zaragoza, que atrairá a atenção do mundo graças à Exposição Internacional Água e Desenvolvimento Sustentável, a partir do próximo dia 14 de junho. Durante 93 dias, suas organizações pretendem manter o que anunciam como “a maior festa da água do mundo”: uma reunião internacional de artistas, cientistas e intelectuais que debaterão em torno deste elemento e que irá acompanhada de 4.500 espetáculos, entre os quais, os visitantes poderão experimentar a força das águas extremas na simulação de um tsunami.
A exposição será um termômetro para comprovar qual é a sensibilidade real dos espanhóis em relação à água. O diretor da exposição, o mexicano Eduardo Mestre, é otimista. Assinala que estamos longe de gerir a água como na Finlândia ou no Canadá, países que têm mais recursos hídricos (os canadenses têm um sentido mais estrito da economia de água apesar de que dispõem de 60.000 metros cúbicos ao ano por habitante, vinte vezes mais que por cada espanhol). Entretanto, “o espanhol não é um esbanjador”, assegura este especialista, que participou de projetos de gestão de água no Nepal, Sri Lanka, Costa do Marfim e vários países da América do Sul. Inclusive não estamos mal se comparados com a Califórnia, berço do movimento conservacionista no mundo. “Um habitante de Madri emprega 125 litros diariamente; um californiano chega a 450”.
A água não é apenas o elemento essencial sobre o qual se assentou a vida em nosso planeta. Representa um fator emocional, significa comércio e também é cultura, originou conflitos e também alianças. Mestre prefere inclinar-se para o lado positivo. “A água une os povos”, assegura. A reflexão histórica está cheia de exemplos como este que Ángel Poveda, professor de História Econômica da Universidade de Alicante, nos mostra, acontecido há séculos: “Em Al Andalus, através do califado, a água foi um elemento vertebrador e de progresso tecnológico. Serviu pra converter a Espanha num jardim”.
(www.ecodebate.com.br) publicada pelo IHU On-line, 23/06/2008 [IHU On-line é publicado pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, em São Leopoldo, RS.]