Duplo Brasil, dupla cidadania, artigo de José de Souza Martins
[O Estado de S.Paulo] A tragédia da entrega punitiva de três jovens da favela da Providência a traficantes da Mineira, que os torturaram, espancaram e assassinaram com 46 tiros, situa-se num cenário de desagregações sociais e políticas mais amplo do que o que vem sendo considerado. O simbólico abandono dos corpos num lixão de Duque de Caxias é recado para dizer a todos nós quanto vale o ser o humano nessa melancólica trama que agrega o bem ao mal.
O costumeiro argumento de que a vítima é culpada e de que favelado é “isso mesmo”, apesar das favelas serem bairros de moradia de trabalhadores no geral pobres, esbarra no fato de que os mediadores ativos do crime são um tenente, três sargentos e sete soldados do Exército. Representantes privilegiados de um pilar da ordem republicana aparecem como agentes ativos e participantes da desordem anti-cidadã que a nega.
A desobediência do tenente à ordem de um capitão para que soltasse os três jovens detidos mostra que no uso do Exército em funções de polícia há um potencial, e agora real risco, de comprometimento de dois valores de referência do mundo militar, a hierarquia e a disciplina. No desacato das jovens vítimas à patrulha, motivo dos atos encadeados que culminaram com sua morte, há apenas o afloramento de um sentimento generalizado de aversão a tudo que representa política, Estado e governo.
As modestas, mas significativas, ambições profissionais e sociais dos três jovens assassinados, ambições de cidadãos em perspectiva, aspirantes a uma inserção estável na ordem social e política, são antípodas das obras de amansamento dos favelados, patrulhadas pelo Exército, com propósitos eleitorais de desmentido difícil. Tais ambições, juvenis e justas, contrastam com a economia nacional supostamente próspera em face da favela como lugar de distribuição das migalhas da prosperidade. Agiram descabidamente no desacato à patrulha militar, ainda que sendo desacato reativo ao cotidiano desacato de suas condições de vida.
Envolvidos em tarefas de polícia, em face de um ato que qualquer delegado de bom senso resolveria com uma repreensão, perceberam os militares que, se liberassem os jovens, isso poderia significar a desmoralização da própria instituição que ali representavam. Viram-se no beco sem saída em que foram postos por aqueles que decidiram que a ocupação da favela pelo Exército era meio apropriado para debelar a violência. Sem alternativa, e temendo a desmoralização, optaram pelo pior: recorreram à ordem política do crime organizado, como se fosse instância superior da instituição a que pertencem.
Os militares são preparados para viver no mundo que lhes é próprio, que tem sua própria lógica e seus próprios valores. Não é casual que o mundo militar seja o mundo do quartel, do confinamento relativo, forma de assegurar uma socialização específica que os educa permanentemente para funções relativas à defesa do país. Expô-los aos processos interativos e à ressocialização própria das situações de marginalidade social, ainda que no seu combate, como ocorre neste caso, é comprometer a substância da própria instituição a que pertencem.
Na situação propriamente militar, e quando o problema se põe, o militar não confraterniza com o inimigo nem é benevolente com ele. Já na situação policial, o processo interativo é outro, entre iguais, ainda que de lados opostos, sujeito à recíproca influência que pode haver entre quem reprime e quem está sujeito à repressão. O embaralhamento desses planos sociais responde em boa parte pelo que ocorreu.
Há aí outro aspecto grave da questão. A decisão de chamar o Exército para atuar como polícia de população civil indica o quanto há de aspirações autoritárias na sociedade brasileira, mesmo e sobretudo naqueles que dizendo-se vítimas da ditadura militar recente, acham que pimenta nos olhos dos outros não arde. Ruim é a ditadura dos outros.
Neste caso, incumbir o Exército de patrulhar os morros, na suposição de que por esse meio a ordem se estabeleceria, esconde a aspiração de que uma força de repressão militar em território circunscrito, em que trabalhadores, favelados e pobres são tratados como inimigos da sociedade e do Estado, asseguraria o sossego dos que lá não vivem. Oferecer-lhes assistência social, como nas Operações Aciso, do tempo da ditadura, só confirma esse propósito, agora de civis e políticos.
A atuação do Exército fora de seu marco institucional, para remendar o fracasso de Estado e governo na administração da paz social e na distribuição justa dos bens e benefícios a que tem direito a população, como se as contradições sociais fossem indício de ânimo subversivo por parte de suas vítimas, dá bem a medida dos equívocos políticos que se escondem por trás dessas três mortes. Aliás, uma sociedade em processo de deterioração na sua cotidiana instabilidade, não se cimenta construindo mini-fortalezas domésticas, com paredes resistentes a balas de 7,5mm, e patrulha armada.
As soluções encontradas para os problemas de violência e desordem nas favelas são irreais quando o militar recorre ao bandido para punir, vingar e evitar a desmoralização de sua função pública. Como ficou evidente neste caso, no fundo, são o reconhecimento da falta de alternativa para o domínio territorial do crime organizado, seja em torno do tráfico, seja em torno do que for. Crime que, aliás, tem sua própria justiça popular, sua própria política social, seu próprio Estado e sua própria força armada. O crime organizado já é outro país, o que nos põe ante o terror da dupla cidadania, como se viu agora.
A desagregação social e a crise de um Estado encurralado não se evidenciam apenas nas favelas do Rio. No Brasil, não só os que combatem pelo mal, mas também os que combatem pelo bem, vêm se encaminhando para formas corporativas de organização e ação política que, em suposto nome da sociedade e do bem comum, instituíram o divórcio profundo entre o legítimo e o legal, base desta problemática dupla nacionalidade.
Artigo originalmente publicado pelo O Estado de S.Paulo, 22/06/2008.