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Artigo

Alimentação e desenvolvimento, artigo de Ricardo Abramovay

[Folha de S.Paulo] Desde que Josué de Castro publicou a “Geografia da Fome”, já se sabe que a humanidade é capaz de produzir o necessário para banir do planeta o problema da subalimentação. Os progressos nos últimos 50 anos foram imensos: o consumo calórico nos países em desenvolvimento aumentou 30%. Das sete nações com mais de 100 milhões de habitantes (China, Indonésia, Brasil, Índia, Paquistão, Nigéria e Bangladesh), só Bangladesh mantém nível de consumo per capita muito baixo.

Em 1990, a ingestão calórica aquém das necessidades individuais básicas atingia 32% dos habitantes da Terra. Hoje, os 850 milhões de pessoas que não conseguem preencher as necessidades alimentares correspondem a menos de 15% da população mundial.

Apesar do avanço, dificilmente o horizonte estabelecido pela ONU de reduzir esse contingente pela metade até 2015 será alcançado. Por quê?

A resposta que domina a cena internacional é que a fome no mundo persiste por causa do protecionismo dos países ricos. Que essa resposta seja conveniente aos interesses do Brasil é compreensível. Mas isso não a torna mais consistente.

A fome, hoje, concentra-se em países da África subsaariana (e, em menor proporção, na Índia e no Paquistão). A esmagadora maioria dos que não conseguem preencher suas necessidades básicas vivem em regiões rurais, e a escassa renda que obtêm deriva da agricultura.

O debate internacional está marcado por uma polaridade fundamental.

Por um lado, há os que preconizam que em regiões rurais de países pobres, ecologicamente frágeis, as atividades agrícolas se reduzam ao mínimo e que suas populações sejam alimentadas principalmente com importações vindas de áreas que já se provaram mais eficientes.

Os que contestam essa associação direta entre liberalização comercial e combate à fome se apóiam em três argumentos importantes.

O primeiro deles pergunta com que recursos os mais pobres pagariam os alimentos importados. Importar exatamente aqueles bens que -na qualidade de habitantes do mundo rural- essas pessoas poderiam e deveriam produzir significa perpetuar sua dependência da ajuda internacional.

Mas será que elevar a produção em regiões ecologicamente frágeis é agronomicamente viável? Uma das mais destacadas personalidades da ciência agronômica mundial, o indiano M. S. Swaminathan, oferece o segundo argumento e responde com um entusiasmado “sim” à pergunta.

É necessário, porém, superar as técnicas que marcaram a conhecida Revolução Verde e cuja essência está em moldar o ambiente natural segundo as exigências das sementes que associam alto potencial produtivo ao uso de fertilizantes químicos e agrotóxicos em larga escala.

O desafio é construir o que Swaminathan chama de “evergreen revolution” (revolução sempre verde), com tecnologias que se adaptem ao meio natural e que sejam capazes de fazer da preservação da biodiversidade uma das bases decisivas da própria expansão produtiva.

O aumento dos preços do petróleo, o encarecimento dos fertilizantes, as exigências dos consumidores e a pressão das organizações da sociedade civil explicam mudanças notáveis na produção agrícola contemporânea em direção a uma relação menos agressiva com os recursos naturais.

E aqui vem o terceiro argumento dos que contestam que a liberalização comercial seja a mais relevante premissa para acabar com a fome: a luta contra a pobreza absoluta passa, antes de tudo, pelo acesso à terra, à educação, a novas tecnologias produtivas e, sobretudo, a instituições estáveis que permitam melhorar a participação dos mais pobres em mercados dinâmicos e promissores.

Nenhuma das liberdades humanas básicas que compõem a essência daquilo que o Prêmio Nobel de Economia Amartya Sen define como “desenvolvimento” resultam automaticamente da liberalização comercial.

Aumentar a produção agropecuária é fundamental, como bem sublinhou o secretário-geral da ONU, mas o mais importante é criar condições para que os que vivem em situação de pobreza absoluta conquistem o direito de produzir a própria alimentação.

Ricardo Abramovay, professor titular do Departamento de Economia da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da USP, coordenador de seu Núcleo de Economia Socioambiental e pesquisador do CNPq

Artigo originalmente publicado pela Folha de S. Paulo, 07/06/2008