Relator da ONU afirma que o aumento da produção de álcool pode agravar a crise dos alimentos
“Devemos parar de investir em biocombustíveis” – O advogado belga Olivier de Schutter, que assumiu em maio o cargo de relator especial da Organização das Nações Unidas para o Direito à Alimentação, enfrenta o desafio de garantir comida às populações mais pobres do mundo num cenário internacional especialmente complicado. Os principais obstáculos para seu objetivo são a alta da demanda por alimentos – e, conseqüentemente de seus preços -, puxada por países em desenvolvimento como Brasil, China e Índia, e a escalada do preço do petróleo. O incentivo à produção de biocombustíveis, uma das principais bandeiras do governo Lula, também é um entrave, na opinião do especialista em direitos humanos. A seu favor, de Schutter só tem a possibilidade cada vez mais próxima de a Europa suspender o subsídio aos produtores locais de alimentos, o que poderia incentivar a produção de grãos em alguns países africanos. Nesta entrevista a ÉPOCA ele comenta essa perspectiva e pede ao mundo para rever a política sobre os biocombustíveis. Por José Antonio Lima, da Revista ÉPOCA, 02/06/2008 18:41.
ENTREVISTA OLIVIER DE SCHUTTER
QUEM É
Advogado formado em Harvard, professor da Universidade de Louvain (Bélgica) e professor visitante da Universidade de Columbia (EUA). É o coordenador da rede de especialistas em direitos fundamentais da União Européia.
O QUE FAZ
Desde 1º de maio, é relator especial da Organização das Nações Unidas para o Direito à Alimentação, com mandato até 2011.
ÉPOCA – Muitos apontam os subsídios agrícolas pagos por Estados Unidos e União Européia como uma grande causa da atual crise. Como o senhor avalia essa posição?
De Schutter – Em primeiro lugar, é claro que os enormes subsídios pagos por países industrializados a agricultores [só na Europa somaram € 55 bilhões em 2007] devem ser diminuídos significativamente porque tornam extremamente difícil para os agricultores de países em desenvolvimento a expansão dos negócios, a venda da produção no mercado internacional e a competição em condições aceitáveis. Estou muito feliz por ouvir que o lobby da agricultura está sendo cada vez mais criticado por manter essa prática. Em segundo lugar, no entanto, não podemos esquecer que vários países em desenvolvimento, muitos da África Subsaariana, alguns dos menos desenvolvidos, são importadores de comida. Se removermos os subsídios sem medidas compensatórias, pode haver um impacto ruim para essa população, tornando a comida mais cara. É preciso remover os subsídios, mas ter contrapartidas, como programas sociais, que permitam a produção de alimentos nesses países importadores.
ÉPOCA – Qual caminho devemos seguir para evitar novas crises como essa?
De Schutter – Absolutamente precisamos de dinheiro para a agricultura dos países em desenvolvimento. Nesses países, existe uma margem de produtividade que pode ser usada para aumentar a produção mundial, com muito menos dinheiro do que seria necessário em países industrializados ou mesmo em países muito desenvolvidos no setor de agricultura, como é o caso do Brasil. Investir na plantação de alimentos em países em desenvolvimento é algo que nós não fizemos de forma suficiente nos últimos 20 anos. E uma das razões de o preço estar aumentando como agora é o fato de a produção não ser capaz de igualar a demanda, que está crescendo em vários países, incluindo economias emergentes, como Índia, China e Brasil.
ÉPOCA – O senhor defendeu o congelamento da produção de biocombustíveis para evitar a crise de falta de alimentos. Eles são a única causa dessa crise?
Olivier de Schutter – Certamente a produção de biocombustíveis nos Estados Unidos, na Europa, no Brasil e em outros países não é a única causa dessa crise. Mas com certeza é uma delas, ao lado de outros fatores, como a especulação no mercado. Peço o congelamento da produção porque os biocombustíveis não são tão bons para o meio ambiente como se dizia e porque, se expandirmos o número de propriedades fabricando combustível para carros, teremos menos espaço para produzir alimentos.
ÉPOCA – Esse pedido vale para todos os tipos de biocombustíveis, incluindo o álcool de cana-de-açúcar feito no Brasil?
De Schutter – Quero ser bem claro porque houve muita confusão sobre isso. Não estou pedindo a reversão das políticas que temos agora. No Brasil, se não me engano, 54% do consumo de combustível é de etanol. Seria completamente irreal e teria impactos sociais muito negativos se o Brasil, de repente, decidisse parar a produção de biocombustíveis. É impensável para mim. Nós devemos, basicamente, não avançar nesse setor. Devemos congelar novos investimentos, especialmente nos Estados Unidos e na União Européia. Ambos começaram a produzir biocombustíveis muito mais tarde, enquanto o Brasil desenvolveu a tecnologia desde os anos 1970. Na UE e nos EUA é um fenômeno muito mais recente, e ambos criaram objetivos extremamente ambiciosos que, acredito, deveriam ser abandonados. Por isso falo em um congelamento, e não em uma moratória. A moratória pararia a produção e o congelamento pararia a expansão e novos investimentos no setor.
ÉPOCA – O seu antecessor [o suíço Jean Ziegler] deixou o cargo dizendo que a produção de biocombustíveis é um crime contra a humanidade. O senhor concorda?
De Schutter – Não concordo, não acho que é uma caracterização correta, mas como disse, acho que os objetivos traçados por União Européia e Estados Unidos são irreais e o prejuízo ao meio ambiente é maior do que o benefício de combater as mudanças climáticas. A cana-de-açúcar do Brasil não é tão ruim, especialmente do ponto de vista ambiental, como o uso do milho ou de óleos vegetais, mas minha preocupação é que essa terra esteja sendo usada para produzir combustível, e não comida.
ÉPOCA – O presidente Luiz Inácio Lula da Silva vem estimulando a produção de biocombustíveis e oferecendo o conhecimento brasileiro na área a muitos países africanos e latino-americanos. Como o senhor vê essa política?
De Schutter – Estou na expectativa de ter diálogos com autoridades brasileiras sobre isso. Ainda não tivemos uma boa troca de informações e não gostaria de tomar uma posição antes de ter esse diálogo. Preciso de mais informações para dar uma resposta definitiva.
ÉPOCA – Mas o senhor acha que seria viável a produção de biocombustíveis nesses países?
De Schutter – Minha impressão atualmente é de que há outras plantas, como sorgo sacarino (sweet sorghum) e o pinhão manso (jatropha), que são mais promissoras para a produção de bioenergia que a cana. O sorgo sacarino pode ser usado ao mesmo tempo para a produção de biocombustível e de alimentos e o pinhão manso cresce em solos pobres, desérticos, nos quais não é possível plantar lavouras de alimentos. Assim, essas duas culturas não competem com a produção de alimentos. Não me parece que a produção de biocombustíveis a partir de cana-de-açúcar seja a solução ideal para países africanos.
ÉPOCA – O senhor tem planos para visitar o Brasil e conhecer melhor as propostas do país neste setor? De Schutter – No momento não tenho planos de ir ao Brasil, mas gostaria de ir durante minha permanência no cargo. Estou em contato com autoridades brasileiras e me prometeram que vão mandar as informações sobre o programa de biocombustíveis brevemente, e vou estudá-las com muito interesse.
ÉPOCA – Ao assumir o cargo, a primeira opinião que o senhor tornou pública foi a oposição à produção dos biocombustíveis. O senhor está otimista que a comunidade internacional vai atender a esse pedido?
De Schutter – É realista o que eu proponho sobre os biocombustíveis. Não quero questionar a política atual ou a produção atual, mas, sim, não ir adiante. É relativamente fácil renunciar a objetivos como o americano, de multiplicar por 5 a produção de hoje até 2022, porque isso simplesmente significaria não ir além do uso atual dos biocombustíveis.