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política indigenista: Avanços e retrocessos vinte anos depois da Constituição de 88

Embora a legislação atual seja avançada, os povos indígenas do Brasil ainda lutam por antigas reivindicações. Por Walter Pinto, do Jornal Beira do Rio, UFPA, ANO VI Nº 62.

Apesar dos avanços introduzidos pela atual Constituição brasileira, a questão indígena ainda apresenta a posse da terra como um tema prioritário. Até os anos 90, a grande bandeira de luta era a questão da demarcação das terras indígenas. Se é verdade que muitas terras foram identificadas, não se pode ignorar que muitas não foram homologadas, principalmente depois do decreto Nº 1.775, que instituiu o direito ao contraditório, garantindo a qualquer pessoa questionar a demarcação proposta. Nas duas últimas décadas, a questão das terras indígenas continua gerando discussões, mas agora associada à questão ambiental, aos recursos hídricos e às mudanças climáticas, novos tópicos na velha pauta.

Vinte anos após a promulgação da Constituição-cidadã, o jornal Beira do Rio ouviu a professora e pesquisadora Eneida Assis, diretora adjunta da Faculdade de Ciências Sociais, mestre em Antropologia e doutora em Ciência Política, sobre os avanços introduzidos pela Carta Magna de 1988, em relação aos povos indígenas, e como a legislação atua sobre este novo momento da história. Eneida Assis vem se dedicando ao estudo da questão indígena desde os tempos de graduação e é, atualmente, a única cientista política trabalhando com o tema na Amazônia, região onde vivem em torno de 220 povos indígenas.

“Posso afirmar que a história dos povos indígenas se escreve antes e depois da Constituição de 88”, assinala a pesquisadora, para quem o processo de renovação e entendimento sobre a questão indígena no Brasil deslanchou a partir da década de 1970, quando a retomada do processo democrático frente ao Estado autoritário exigiu a organização da sociedade. Os povos indígenas, como parte da sociedade, não poderiam ficar à margem desse despertar, em que se destacaram atores como a Igreja Católica, movimentos religiosos menos evidentes e entidades de classe, entre as quais, a Associação Brasileira de Antropologia, a Associação Lingüística e, sem dúvida nenhuma, a Ordem dos Advogados do Brasil.

UFPA abrigava Grupo de Apoio ao Índio

Naquela fase, as ONGs ainda não existiam, mas surgiram associações especificamente voltadas à causa indígena, como por exemplo, o Grupo de Apoio ao Índio (GAI), com sede na Universidade Federal do Pará, e que teve como última presidente, a antropóloga Anaíza Vergolino. O GAI encerrou suas atividades em 1981, tornando Eneida Assis uma espécie de curadora da sua documentação. Todas essas entidades desempenharam um papel importante nos anos 70 e 80, fornecendo o instrumental necessário para a formação daqueles que iriam participar da Assembléia Nacional Constituinte em 1988. “A relevância desse papel foi muito grande, principalmente porque a questão indígena era bastante desconhecida no Brasil, como afirmou a historiadora e antropóloga Manuela Carneiro da Cunha, então presidente da Associação Brasileira de Antropologia. Cabia ao pessoal que fazia parte dessa “comissão-de-frente” fornecer a documentação informativa para que os deputados pudessem trabalhar”, relata Eneida Assis.

Em termos concretos, os esforços de entidades, antropólogos, lingüistas e lideranças indígenas, ficaram expressos nos vários artigos do capítulo 7 da Constituição, que compõem o cenário legal que favorece os índios. “Não há dúvida que a Constituição de 1988 representou um avanço real e um diferencial quanto à questão indígena. Historicamente, as Constituições Republicanas sempre reconheceram a questão, mas com base no princípio da integração. A atual inovou ao reconhecer o princípio da diferença”, avalia a pesquisadora.

Eneida Assis lamenta, porém, que a mobilização não tenha conseguido fazer com que os indígenas pudessem participar como constituintes, o que para ela, demonstra a dificuldade do Brasil em lidar com a questão multicultural, ou seja, lidar com outras formas de pensar, agir e legislar.

Apesar dos avanços expressos na Constituição, a pauta de reivindicação dos povos indígenas ainda está apoiada no tripé terra, saúde e educação. O nível de organização de cada grupo reflete a maneira como eles podem influenciar nas agendas das políticas públicas, sobretudo nas estaduais.

Nível de organização é baixo no Pará

O maior contingente populacional indígena do Brasil está na Amazônia. São em torno de 220 povos, com uma sociodiversidade muito grande e níveis diferentes de organização. Alguns grupos, como os de Roraima, Mato Grosso e Amazonas, possuem excelente nível organizacional e alta representatividade por meio de associações indígenas. No outro extremo, há os grupos que só agora começaram a se organizar, entre os quais, os do Tocantins, Santarém e os Tembé.

Quanto mais organizado o grupo, maior a possibilidade de fazer valer seus direitos constitucionais. Eneida Assis, porém, observa que o Estado do Pará não tem demonstrado interesse em favorecer os grupos que ainda estão iniciando o seu processo de organização, ao contrário do que ocorreu no Estado do Amapá. “É preciso levar em consideração o fator organizacional para se pensar a questão indígena na Amazônia e no Brasil”, afirma.

Um dos efeitos da falta de organização é percebido na área educacional. Segundo a pesquisadora, “existe uma legislação fantástica em termos de educação escolar, sobretudo no nível básico e fundamental, mas não houve a efetivação de políticas públicas favorecendo realmente um processo de educação que pudesse atender às necessidades dos grupos. Há ilhas de excelência, com alguns grupos já atingindo o nível universitário, mas a grande maioria continua na escola básica ou fundamental. Isso, de certa forma, reflete o processo organizativo dos povos indígenas”.

Terra ainda é prioridade

A pauta indígena começa ainda com a questão da terra. Além da necessidade de não se interromper o processo de identificação, demarcação e homologação das terras, que não podem ser vistas de forma isolada, “o problema das terras está associado à sustentabilidade e às questões internacionais em função das mudanças climáticas e dos recursos hídricos”, afirma a pesquisadora Eneida Assis.

Ela toma, como exemplo, a terra indígena do Alto Guamá, que apesar de estar cercada de fazendas e assentamentos do Incra, ainda é uma grande ilha, com a floresta relativamente em pé. Outro exemplo é o Parque Indígena do Xingu, onde as cabeceiras do rio Xingu estão praticamente assoreadas por conta das fazendas que derrubaram a mata ciliar. Cita ainda a situação dos Kaiowa-Guarani, obrigados a arrendar suas terras para pequenos agricultores como única forma de ganhar algum dinheiro. A degradação do meio ambiente reduz à sustentabilidade das terras em que vivem os índios. Há mais de dez anos parado por conta da questão da mineração em terras indígenas, o Estatuto do Índio traz uma legislação que, na avaliação da pesquisadora, precisa ser rediscutida e modificada, conforme também a opinião do movimento indígena.

Ensino precisa se voltar para cultura indígena

Quanto à educação indígena, a antropóloga Eneida Assis observa que, embora impecável quanto ao ensino fundamental, a Legislação resvalou no ensino médio, a porta de entrada à universidade. Em pleno debate sobre a importância do ensino médio para os grupos indígenas, o MEC implantou o programa “Diversidade na Universidade”, levando a discussão para a forma de acesso dos índios nas universidades. A reivindicação por cotas, muito ligada ao movimento negro, manteve os indígenas à parte. No entanto, a proposta de acesso por cotas não é hegemônica entre os índios, havendo os que defendem condições de acesso e sabem da importância do ensino médio de qualidade.

Entre alguns povos do Sul, é possível encontrar indígenas até com título de doutor, como entre alguns kaigang. Os grupos que estão tendo acesso à universidade falam o português. Na região Norte, porém, ainda são raros os casos de índios que chegam à universidade Os parkategês estão entre os primeiros. Beneficiaram-se de condições sociais e políticas que possibilitaram estudo em escolas formais de Marabá. Mas, para o restante dos grupos do Pará, o problema ainda está no ensino fundamental.

Recentemente, os Tembé conseguiram a implantação do ensino médio em sua aldeia, mas trata-se de escola de ensino formal, muito diferente da escola preconizada pela resolução nº 0399 que valoriza a cultura e dá direito aos índios de elaborar o seu próprio projeto político-pedagógico, de estabelecer um calendário e de definir como o professor será contratado. “Na verdade, a resolução aponta para a criação de um subsistema de educação indígena. Mas, na prática, isso não ocorre porque as escolas que funcionam em aldeias são agregadas a uma determinada escola formal municipal”, explica. Por trás disso tudo, Eneida Assis observa a ignorância dos governos. “Os próprios setores das secretarias que cuidam da educação indígena são escolhidas entre funcionários sem nenhum preparo na questão, muitos só esperando a hora da aposentadoria, ou que incomodavam, ou entre pessoas sem nenhuma experiência”.

Atendimento de saúde continua precário

Apesar dos avanços na legislação de saúde, principalmente por meio da criação dos Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEI), que garantem atendimento às populações que estão fora de um determinado município, Eneida Assis aponta distorções, como a ausência de capacitação para técnicos que prestam esse atendimento.

“Construindo um pequeno histórico sobre a saúde indígena, deparei-me com Noel Nutels, figura notável na história da atenção à saúde, que pregava o atendimento ao índio por pessoas realmente capacitadas, treinadas não só na área médica, como também antropológica”, explica a pesquisadora. No entanto, com o desmonte da FUNAI (Fundação Nacional do Índio) e com a situação vivenciada pela própria área da saúde, os técnicos mais capacitados começaram a ser substituídos por pessoas ainda em processo de formação.

O outro problema é a própria situação das secretarias municipais de saúde. Não raramente, alguns gestores são obrigados a devolver os recursos repassados para a saúde indígena por falta de pessoal qualificado para realizar as atribuições do Distrito Sanitário. Parte dessa verba poderia ser usada para capacitar o agente de saúde, mas nem sempre o agente tem escolaridade suficiente.

“Todos esses fatores mostram que, quando você vai discutir um tema dentro da questão indígena, não pode descuidar de outros, pois eles estão todos relacionados”, conclui Eneida Assis.