EcoDebate

Plataforma de informação, artigos e notícias sobre temas socioambientais

Artigo

etanol: Dedos sujos apontam para mãos sujas, Gabriel de Salles

[Gazeta Marcantil] O domingo não era apenas o dia de descanso para quem trabalhava a semana inteira de sol a sol. Era também a oportunidade de ir à vila ou à cidade, os homens para ver o futebol, tomar algumas nos botecos, e até fechar negócios, as mulheres para visitar as amigas e se inteirar das últimas fofocas e os jovens para a paquera, pouco além de olhares furtivos, ou o namoro respeitoso. Os sítios ficavam desertos e as áreas urbanas se enchiam de gente, numa movimentação bem maior quando havia festa religiosa ou algum show com duplas de música sertaneja de raiz.

Hoje, acontece o contrário. No final de semana, os moradores das cidades procuram no campo as pequenas áreas destinadas unicamente ao lazer, transformando num espaço desolador as praças outrora palco de encontros entre visitantes e citadinos. Este congraçamento durou muitas décadas e permitiu razoável equilíbrio entre populações rurais e urbanas, com as primeiras chegando, até a década de 60, a quase metade dos habitantes de São Paulo, justamente o estado mais industrializado do País.

Agora, nestas pequenas áreas de lazer os urbanos se misturam aos poucos sobreviventes que mesmo num estado sufocado por canaviais, como é o caso paulista, provam que ainda é possível o trabalho rural com dignidade, mesmo sem nenhum tipo de apoio oficial, muito mais voltado para os interesses dos defensores das monoculturas.

Em sítios, pequenas fazendas e chácaras dedicados à produção de frutas, legumes, pequenos animais e pecuária leiteira, tocados pelos proprietários e, eventualmente, um ou alguns empregados, se desenvolve um tipo de agricultura familiar ausente dos discursos governamentais, já que não são pequenos o suficiente para serem incluídos nos programas oficiais assistencialistas nem grandes demais para contarem com a permanente generosidade dos cofres públicos, na forma de dívidas sempre acumuladas, renegociadas e perdoadas ou nunca quitadas.

Uma visita a estes poucos espaços produtivos desenha a paisagem nostálgica do que poderia ser hoje a vida no interior brasileiro, a partir de um exemplo paulista, caso não tivesse acontecido a extinção da pequena propriedade familiar. Nestas áreas sobreviventes no meio do oceano de canaviais, as famílias – ao contrário do abandono de décadas passadas, quando até o acesso a um medicamento demorava um ou mais dias – mantém contato permanente com as cidades, educam seus filhos, participam das atividades de lazer e das escassas programações culturais e conseguem equipar suas propriedades com as tecnologias necessárias, em que internet e celulares integram o dia-a-dia. Apresentam padrão de conforto muito superior à maioria dos habitantes das cidades, outrora moradores do campo e hoje mão-de-obra de reserva, inclusive para o trabalho rural.

Pode até ser, como disse o presidente Luiz Inácio Lula da Silva na reunião da FAO, Roma, que os dedos que apontam para os biocombustíveis brasileiros estejam “sujos de óleo e carvão”. Mas quem está familiarizado com o que aconteceu e continua acontecendo nos campos do Sudeste do País – que parece não ser o caso do presidente – tem motivos de sobra para dizer que a expansão do cultivo da cana-de-açúcar nesta região foi e continua sendo feita por mãos sujas por crimes ambientais na forma de destruição de florestas nativas, extinção de nascentes de rios e riachos, utilização indiscriminada de agrotóxicos e queimadas permanentes nas safras, entre outros. O mais perverso desses crimes, contudo, foi o desmantelamento do equilíbrio entre trabalhadores e empreendedores rurais e urbanos que poderia ter feito do Brasil exemplo mundial dos chamados arranjos locais, dando significado correto e não demagógico à verdadeira sustentabilidade.

kicker: A monocultura da cana desmantelou formidável exemplo da verdadeira sustentabilidade

(Gazeta Mercantil/Caderno A – Pág. 2, 6 de Junho de 2008) GABRIEL DE SALLES* – Editor E-mail: gsalles@gazetamercantil.com.br