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Artigo

A verdadeira segurança hídrica do Semi-árido nordestino, artigo de João Suassuna

[EcoDebate] As características geológicas existentes no Semi-árido brasileiro fazem com que cerca de 70% de sua superfície sejam constituídos por um embasamento – em linguagem geológica denominado de Escudo Cristalino – onde a rocha que dá origem aos solos está praticamente à superfície, chegando a aflorar em alguns momentos. Tal característica imprime à região, em anos de abundância pluviométrica, escoamentos superficiais intensos, causadores de enchentes de enormes proporções, como as verificadas no início do ano em curso, as quais resultaram em enormes prejuízos para boa parte de sua população.

Apesar de ser considerada uma das regiões semi-áridas mais chuvosas do planeta – a Embrapa estima volumes precipitados em sua superfície da ordem de 700 bilhões de m³/ano – as descargas anuais de seus rios, em direção ao oceano, registram baixas infiltrações em seus aqüíferos (cerca de 58 bilhões de m³, apenas), quando comparadas aos volumes anualmente precipitados, desproporção essa causada não apenas pelas características geológicas existentes, mas, e principalmente, pela intensa evaporação reinante no ambiente (o potencial evaporimétrico da região é superior a 2.000 mm/anuais, numa região em que chove, em média, até 800 mm). Do ponto de vista do aproveitamento desse potencial escoado, o homem maneja cerca de 27 bilhões de m³/ano, conforme citação feita por Isaias Vasconcelos de Andrade, técnico aposentado da Sudene, no seu livro “Semi-árido: manejo da água, abastecimento, agropecuária na pequena bacia hidrográfica”.

Aldo Rebouças, hidrogeólogo, professor da USP e exímio conhecedor das águas nordestinas, afirma, em seus trabalhos, que bastaria a extração de apenas 1/3 desse volume escoado (dos 58 bilhões de m³/ano), para se ter água suficiente para o abastecimento de toda população nordestina atual, estimada em cerca de 47 milhões de pessoas, com uma taxa de 200/litros/habitante/dia, além de irrigar mais de 2 milhões de hectares, com uma taxa de 7.000 m³/ha/ano. Na visão de Rebouças, a água no Semi-árido existe, faltando, apenas, o indispensável gerenciamento desse recurso para a satisfação das necessidades do seu povo.

O intenso escoamento superficial existente no Semi-árido motivou as autoridades à construção de represas, com vistas a acumular, da melhor forma possível, os volumes escoados, impedindo ou dificultando a sua trajetória até o oceano, para serem usados posteriormente. Diante da tarefa de maximizar o uso dessas águas, foram construídas, na região, no último século, cerca de 70.000 represas (de pequeno, médio e grande porte), as quais vêm acumulando um expressivo potencial volumétrico, estimado em cerca de 37 bilhões de m³. É o maior potencial represado em regiões semi-áridas do mundo, conforme citação feita por Manoel Bomfim (ex-diretor regional do Dnocs e da Codevasf) em seu livro “A potencialidade do Semi-árido Brasileiro”. Segundo ele, há cerca de 14 a 15.000 represas plurianuais no Semi-árido nordestino, as quais acumulam mais de 90% das águas existentes na região e que suportam facilmente as grandes travessias estivais, mesmo com o uso continuado de suas águas. Para Bomfim essas represas não secam jamais.

É fundamental se conhecer de perto a existência e a importância dessas represas para o abastecimento das populações e, principalmente, o poder regularizador que elas proporcionam às vazões dos rios represados. José do Patrocínio Tomaz, conhecido hidrogeólogo paraibano e professor aposentado da Universidade Federal de Campina Grande, exemplifica, em seus trabalhos, o poder regularizador das represas de Orós e Banabuiú, ambas plurianuais e localizadas no estado do Ceará. Segundo ele, essas represas têm 1,9 e 1,6 bilhões de m³ de capacidade, respectivamente, e possuem poder regularizador de cerca de 11 e 10 m³/s, com 100% de garantia de uso, qualquer que seja o evento hidrometeorológico existente na região. Caso essas represas venham a secar, prossegue Tomaz, as causas são de outra ordem, podendo ser através de uma operação incorreta, com retiradas superiores à capacidade de regularização, ou mesmo da falta ou má gestão das bacias controladas por essas represas.

Como se tratou aqui de questões ambíguas, portanto sujeitas a confundir o imaginário das pessoas, como aquelas voltadas ao potencial volumétrico das represas e à disponibilidade de suas águas, se faz necessária uma observação com vistas ao esclarecimento de tais questões. Ao afirmarmos, por exemplo, que a represa Castanhão, no Ceará, é portadora de 6,7 bilhões de m³, estamos nos referindo à sua capacidade volumétrica. Mas quando nos referimos ao poder regularizador dessa represa, impondo ao rio Jaguaribe, uma vazão de cerca de 28,52 m³/s, com 90% de garantia de uso (essa informação consta da atualização do Plano Estadual de Recursos Hídricos do Ceará, de 2005), estamos nos referindo à sua disponibilidade hídrica. Notem que “m³/s” é unidade de fluxo, a qual, aliada a um determinado percentual de garantia de uso, resulta em fator de disponibilidade volumétrica dessa represa.

Outra questão importante e merecedora de destaque é o potencial hídrico existente no subsolo do Semi-árido. Apesar de a grande maioria da geologia da região ser cristalina, onde não há possibilidades de reservas hídricas significativas de subsolo, não se podem desprezar as áreas de geologia sedimentária existentes na região. Cerca de 70% das águas nordestinas de subsolo estão localizadas nas bacias sedimentárias do Maranhão e do Piauí e os 30% restantes em nichos sedimentários específicos, espalhados por toda região. Segundo Bomfim, o potencial hídrico existente no subsolo do Nordeste é de cerca de 135 bilhões de m³, dos quais estão sendo utilizados, efetivamente, para fins de atendimento das populações, por intermédio de 90.000 poços tubulares perfurados, entre 800 e 900 milhões de m³. A realidade que preocupa é a de que a grande maioria desses poços nunca recebeu equipamentos de bombeamento através de programas de abastecimento d´água e que cerca de 40% deles encontram-se paralisados pelas razões as mais diversas, menos por falta d´água. A esse respeito, Bomfim esclarece que o Nordeste pode explorar cerca de 20% de suas reservas subterrâneas (27 bilhões de m³/ano), sem queda de pressão, pois os poços são reabastecidos anualmente pelas águas das chuvas caídas e que são drenadas verticalmente para o seio da terra. A título de nota, um poço tubular perfurado no aqüífero de uma bacia sedimentar gera, freqüentemente, de 100.000 a 400.000 litros por hora, sendo possível, com esse volume, abastecer uma cidade de 50.000 habitantes.

Foi através da análise das disponibilidades hídricas das bacias do nordeste setentrional que João Abner, doutor em recursos hídricos e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, concluiu não haver escassez na referida região e, portanto, sua garantia hídrica é real. Abner afirmou, em seus estudos, que as bacias do estado do Ceará, por exemplo, possuem uma disponibilidade hídrica de 215 m³/s, da qual a população do estado só utiliza 54 m³/s. O estado do rio Grande do Norte possui uma disponibilidade de 70 m³/s e só usa 33 m³/s e a Paraíba, um dos estados mais complicados em termos de fornecimento de água para sua população, tem uma disponibilidade de 32 m³/s e só está utilizando 21 m³/s.

Diante de toda essa riqueza hídrica no Semi-árido é revoltante se observar a existência de populações inteiras passando sede na região, resultado do descaso de nossas autoridades na elaboração e na condução de políticas públicas visando o seu abastecimento. A insipiência de políticas que garantam o necessário acesso à água é uma constante. Diante da precariedade do abastecimento, torna-se muito freqüente observarem-se populações inteiras passando necessidade, mesmo residindo a poucos quilômetros das fontes hídricas ou mesmo no entorno das principais represas nordestinas. Esse fato não ocorre apenas no ambiente próximo aos reservatórios, mas, também, próximo aos principais rios nordestinos, a exemplo do São Francisco, que possui inúmeros municípios desabastecidos, apesar de se encontrarem às suas margens. Exemplo marcante nesse sentido é o da cidade alagoana de Traipu, a qual não tem água encanada na maioria de suas residências, sendo, inclusive, portadora de um dos mais baixos índices de desenvolvimento humano (IDH´s) do país. Como é possível a existência de um município em tais condições de pobreza, localizado às margens do principal rio nordestino? Tal exemplo mostra com muita clareza, que a proximidade da água não é o fator principal de promoção do desenvolvimento, se não houver por trás tudo, uma política capaz de viabilizar suas ações.

Aliás, essa é uma das principais críticas feitas, pelos movimentos sociais, ao projeto da transposição do rio São Francisco. De um lado, a existência de municípios em suas margens inteiramente desabastecidos, contrastando com a proposta faraônica de transporte de suas águas para o abastecimento das principais represas nordestinas, sabidamente para uso no agronegócio. Esta é uma realidade por demais cruel, onde se pode verificar que a poucos quilômetros destas represas, populações inteiras passam sede e fome devido aos precários programas de distribuição de água existentes.

Finalmente, fica muito claro que o Semi-árido nordestino tem muita água, faltando apenas as indispensáveis políticas públicas que possibilitem o seu acesso. Neste sentido, cremos que é chegada a hora de sentarmos à mesa para discutirmos qualquer gota d´água disponível na região, sob pena de serem colocadas em risco todas as iniciativas de desenvolvimento que nela venham a ser postas em prática. Concretizadas essas discussões, o povo nordestino só terá a agradecer.

Recife, 02 de junho de 2008.
João Suassuna – Engº Agrônomo e Pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco, colaborador e articulista do EcoDebate.