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Artigo

Grandes tarefas, artigo de Miriam Leitão

[O Globo] Quase 100 mil km² foram destruídos de Floresta Amazônica durante o governo Lula. Um Pernambuco inteiro. Sem contar este ano. Acusavam a ex-ministra Marina de ser intransigente. Imaginem se ela não tivesse sido! O Brasil está no meio de uma guerra, e o campo de batalha é a Amazônia. A saída de Marina é um lance dessa guerra, que continuará com Carlos Minc.

O aumento dos preços das commodities, a crise da falta de alimentos no mundo, a necessidade de gerar mais energia para sustentar o crescimento, o período eleitoral, o bloqueio dos financiamentos, tudo vai intensificar a luta na Amazônia. Inútil pensar que a questão vai se resolver porque o novo ministro aprovaria licenciamentos ambientais com rapidez.

Licenças dadas “na marra”, sem responder às dúvidas dos técnicos, enfrentam o Ministério Público, podem parar na Justiça. Quando Marina assumiu, havia 45 projetos de hidrelétricas parados na Justiça. Os problemas foram resolvidos. A Amazônia é a nova fronteira hidrelétrica, tem dito a ministra Dilma Rousseff, portanto novos impasses vão surgir entre produzir a energia necessária e proteger a floresta. Só o anúncio de novas obras já acelera a corrida pela ocupação da terra.

Uma visão simplista, que ficou consagrada, sustenta que toda a briga do Madeira se deve a um tal bagre. Quem se informou sabe que foi mais complexa a discussão para o licenciamento. Os técnicos do Ibama levantaram questões objetivas. O Rio Madeira é riquíssimo em peixes; eles serão afetados? Tem muitos sedimentos; isso reduziria a vida útil da obra e aumentaria os alagamentos? A região tem foco de malária; como proteger a população que está indo atraída pela obra? A tecnologia bulbo só foi usada em usinas com poucas turbinas, essas terão 44 ou mais turbinas; qual é o impacto disso? Todas dúvidas razoáveis, que exigiam estudos. A licença foi dada com uma série de condições, pois o princípio da precaução deve prevalecer se não formos insensatos.

O país pode escolher a visão rasa que diz que a exministra era contra o agronegócio.

É isso que afirmam os ruralistas que este ano ocuparam a Comissão de Meio Ambiente da Câmara dos Deputados. Sob esse guarda-chuva, querem aprovar leis que ampliem as facilidades de desmatamento da Amazônia. Não acham o bastante o Brasil perder 100.000 km² de floresta em seis anos. Uma das propostas é aceitar que quem desmatou 50% de sua propriedade possa refazer a reserva legal com espécies exóticas. Isso produziria dois efeitos. Primeiro, quem ainda tem 80% de reserva abateria tudo imediatamente para fazer uso comercial da terra; segundo, o país trocaria a riquíssima biodiversidade amazônica por plantações de eucalipto. A troca não é inteligente.

Ninguém enfrentou ainda o nó cego que é a propriedade da terra, a chamada “questão fundiária”. De quem é a terra onde se planta, cria-se gado, tira-se madeira na Amazônia? Essa é a pergunta que, em algum momento, o Brasil terá que responder, seja quem for que estiver ocupando o Ministério do Meio Ambiente, a ideológica ou o pragmático.

Essa inescapável questão, que nos ronda há décadas, divide o Incra em dois grupos irreconciliáveis. Um acha que o mistério tem que começar a ser desvendado partindo-se da análise dos documentos atuais para, num exame minucioso, ir separando falsos de verdadeiros. Outro grupo acha que tem que se partir do chão, procurando saber quem está hoje na terra para se achar o dono original. Há, pelo menos, 16 tipos de papéis diferentes; todos eles com um tipo de fraude. Há capas de legalidade em alguns.

Os CPCVs, por exemplo, são os Contratos de Promessa de Compra e Venda, emitidos pelo governo militar a quem aceitasse ocupar lotes de 3.000 hectares. Quem fosse teria que cumprir determinadas condições para ter o título definitivo. Era um documento intransferível.

Quase todos foram transferidos e passaram pelas mãos de vários “donos”. Por estes papéis, falsos, meio falsos, totalmente fraudados, se mata na Amazônia. A irmã Dorothy Stang foi morta numa disputa de terra assim.

A posição do Brasil no debate climático mundial envelheceu, e o Itamaraty, dono da posição, não percebeu.

Parte da idéia de que países de industrialização recente, como nós, não podem assumir metas de redução dos gases de efeito estufa. O efeito prático dessa estupidez é ajudar a China a enfumaçar o planeta e dar um álibi ao nosso desmatamento.

– Quando algum jornal inglês, francês, americano escreve qualquer reportagem sobre o desmatamento e o avanço da produção de carne e soja, vai lá o embaixador entregar uma carta ao jornal. De nada adiantará carta de embaixador. Eles têm o direito de criticar o desmatamento e vão fazer isso cada vez mais. A pressão contra nós vai aumentar e temos que responder fazendo a coisa certa – diz o ex-governador Jorge Viana.

Há tarefas inadiáveis na Amazônia, seja qual for o ministro. Atualizar a nossa posição sobre clima, regularizar as terras, deter o desmatamento. O governo pode jogar rios de dinheiro através dos bancos públicos e dos fundos soberanos no bolso dos empresários brasileiros, mas, se o Brasil não combater, com atos, as evidências de que a nossa produção agropecuária cresce às custas da floresta, nossas exportações serão barradas. Quem não entende isso é que é contra o agronegócio.

Artigo originalmente publicado no Painel Econômico, do O Globo, 16/05/2008.