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Crise alimentar vira argumento para produtores rurais

A crise mundial nos preços dos alimentos virou o mais novo argumento dos produtores que vieram para a Amazônia nos anos 70 e 80 contra a lei que os obriga a manter 80% de suas propriedades com floresta em pé. Por Carolina Glycerio, enviada especial da BBC Brasil ao Mato Grosso e Pará, 14 de maio, 2008 – 15h50 GMT (12h50 Brasília).

Os chamados “pioneiros” se dizem “traídos” por terem se disposto a explorar uma região até então intocada em troca de incentivos e de terras baratas, quando o regime militar, receoso da presença estrangeira na fronteira amazônica, cunhou o bordão nacionalista “integrar para não entregar”.

“A gente se sente traído porque a gente investiu em uma área que não tinha nada, e agora eles estão tirando um direito que nós adquirimos”, diz o engenheiro florestal e produtor de grãos Edemar Kronbauer, de 48 anos, 21 deles na Amazônia.

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A lei começou a mudar em 1996, por meio de medida provisória que vem sendo sucessivamente reeditada, sempre sob os protestos do setor produtivo. A gritaria aumentou com operações de fiscalização do Ibama e da Polícia Federal que têm resultado em multas, embargos e cortes de crédito ao produtor em desacordo com a legislação ambiental.

Mais recentemente, a crise mundial no preço dos alimentos tem servido como argumento poderoso aos que defendem a expansão da fronteira agrícola do Brasil.

“A gente pode oferecer comida mais barata para o mundo inteiro, mas falta logística”, reclama o maior produtor de soja do mundo, Eraí Maggi (primo do governador Blairo Maggi), que tem mais de 200 mil hectares de área plantada.

Só o preço da soja já subiu 87% em relação a março do ano passado, embora todo produtor faça questão de lembrar que os preços estavam muito baixos antes de começarem a escalar nos últimos meses.

A sensação de oportunidade perdida não é exclusiva dos grandes produtores. “A gente fica ressentido. Você tem a terra, mas não pode trabalhar nela”, diz Irineu Schneider, que tem 500 hectares de terra. “Se você tem que produzir em 20% da sua terra, tem que ter pelo menos 1000 hectares para viabilizar.”

Ele, como outros produtores há muito tempo estabelecido em áreas de desmatamento, se mostra especialmente revoltado com a exigência de que eles replantem o que derrubaram no passado. “A gente quer trabalhar, mas ninguém vai plantar mato. A gente pode morrer em cima dessa terra, mas não vamos plantar mato.”

“Por que nós devemos comprar terra e manter floresta para o resto do mundo? Se as pessoas no resto do Brasil ou mesmo no exterior mantivessem 20% das suas florestas em pé, não teria problema no mundo. Mas isso é terra produtiva, as pessoas precisam comer, porque vai faltar alimento, é claro que vai.”

Cumprir a lei

O gerente regional do Ibama em Sinop, Roberto Agra, diz que “o valor do pioneirismo não se contesta”, mas que a condição de pioneiro “não isenta as pessoas de cumprirem a lei”. Nesse caso, diz Agra, o direito coletivo prevalece sobre o direito individual coletivo.

“A legislação que determinou certa forma de ocupação da Amazônia não está mudando agora, vem mudando pelo menos desde 1996” diz o gerente regional do Ibama em Sinop (MT), Roberto Agra.

Para os produtores, se existe um interesse coletivo nas suas terras, eles devem ser recompensados por manter a floresta em pé. Não só os mecanismos que prevêem essa compensação ainda estão sendo desenvolvidos, como nem sempre eles fazem sentido para quem está acostumado a trabalhar na terra.

“Se eles quiserem preservar, é mais fácil eles comprarem a terra, porque se alguém invadir a terra, o problema é meu e eu tenho de ser forçado a cuidar da terra da maneira que eles acham que é certo”, diz Irineu.

Outros, como Edemar, porém, se mostram receptivos à idéia desde que recebam valores semelhantes aos que ganhariam com a agropecuária.

Da forma como a ocupação se deu na Amazônia, “trabalhar” significou por muito tempo derrubar a floresta e preparar a área para o cultivo ou para o gado, o mesmo processo que, na visão do Ibama, compõe o ciclo do desmatamento.

Para Agra, do Ibama, o processo de desenvolvimento adotado nos anos 70 é “incompatível com as necessidades não só regionais e nacionais, mas mundiais que o Brasil tem em relação a preservação da Amazônia”.

“Quem não se adequou precisa se adequar à legislação. A primeira coisa é buscar regularização, seja fundiária ou no licenciamento ambiental. Isso é pressuposto mínimo pra que a gente consiga avançar na discussão de prestação de serviços ambientais.”

Mudança

“É claro que a lei não é viável. A terra foi adquirida há muito tempo e nós colocamos muito dinheiro nela. Quem veio para cá, veio para usar 50%, 80% da terra, não 20%”, diz Kronbauer, hoje baseado em Querência.

O presidente do sindicato dos produtores rurais de Querência, Darci Heeman, não se conforma que a escritura que lhe conferia o direito de explorar 80% da terra – limite estabelecido na época para algumas áreas que foram consideradas cerrado – tenha pedido valor diante de uma lei que, na visão dos produtores, mudou as regras do jogo durante a partida.

“Existe uma interação de cadeias diferentes, que têm uma relação econômica e de viabilidade entre elas. O primeiro passo é ocupação legal ou ilegal de determinada área, com exploração de madeira, que gera o capital para a própria abertura de área para a conversão em pecuária ou agricultura”, ele diz.

Em áreas de madeiras de alto valor comercial, ainda fartas no Estado do Pará, é justamente o ganho com a madeira que levanta o capital necessário para converter a área, e em casos de desmatamento ilegal é a comercialização da madeira “fria” que permite a continuidade do ciclo.

O madeireiro Adalberto Andrade, dono de uma serraria em Castelo dos Sonhos, no Pará, diz, porém, que tem sido difícil operar legalmente.

Segundo ele, a aprovação de um projeto de manejo florestal, que prevê a retirada seletiva e sustentável de madeiras, demora tanto para ser aprovado que as pessoas ficam sem opção a não ser operar sem ela. “É um jogo de empurra, o Ibama depende do Incra, o Incra, do Ibama”.

Assim como Adalberto, muitos dizem que querem trabalhar legalmente, mas que estão sendo empurrados para a clandestinidade por uma lei que torna o seu próprio meio de produção inviável.

A metáfora do pai que abandonou o filho no nascimento e voltou cheio de imposições 18 anos depois já virou parte da retórica local. De fato, ainda hoje o Estado é praticamente invisível na região. Viaja-se horas pela BR 163, que liga Cuiabá a Santarém – principalmente no trecho paraense –, sem qualquer sinalização de serviço público estadual ou federal.

“Não tem como produzir alimentos sem desmatar”, diz Carlos Alberto Guimarães, o Carlito. Ele é conhecido como um dos homens que mais desmataram a Amazônia – foram 100 mil hectares ao longo de 42 anos.

Hoje, com uma produção de 6 mil toneladas de carne e 15 mil toneladas de grãos por ano, ele está reflorestando e garante que tem mais prazer em plantar do que em cortar uma árvore.

“Reflorestar é muito melhor do que desmatar. Ninguém desmata porque quer. Desmatar é um mal necessário que a humanidade teve que conviver desde que o mundo é mundo”, diz Carlito.