Pesquisadores comentam a posição da saúde diante das mudanças climáticas
A Organização Mundial da Saúde (OMS) elegeu o tema Protegendo a saúde frente às mudanças climáticas para debates este ano, considerando as ameaças crescentes que as mudanças climáticas vêm causando à segurança da saúde pública global. Em entrevista ao Informe Ensp, o pesquisador Marcelo Firpo, do Centro de Estudos da Saúde do Trabalhador e Ecologia Humana da Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp) da Fiocruz, e Bruno Milanez, doutorado em política ambiental pela Lincoln University, atualmente atuando na Escola como bolsista, discorrem sobre o campo da saúde pública diante dos efeitos das mudanças climáticas, do mercado de carbono e do modelo de desenvolvimento econômico que gera e estimula desigualdades entre países ricos e pobres. Informe Ensp/ Agência Fiocruz de Notícias.
Em 2008, o Dia Mundial da Saúde apontou para a necessidade de proteger a saúde dos efeitos adversos das mudanças climáticas. O tema põe a saúde no centro do diálogo global sobre as mudanças climáticas. Como a saúde pode atuar nesse cenário?
Bruno Milanez: Entre os vários cenários desenhados como conseqüência do processo de mudanças climáticas são esperadas mudanças no padrão das chuvas e aumento da incidência de eventos extremos, como inundações, furacões e secas. Porém, ainda existem muitas incertezas sobre o que realmente poderá vir a acontecer, particularmente em relação à extensão e à velocidade das mudanças. Certamente, a área das políticas públicas (inclusive políticas em saúde) precisa se preparar para atuar em um ambiente mais dinâmico, onde os padrões serão menos estáveis.
Milanez: um aspecto central para a saúde pública é que determinados grupos populacionais e regiões do planeta são mais vulneráveis e precisam ser vistos com mais atenção, tornando o problema mais complexo |
No caso específico das ameaças à saúde, nos locais onde ocorrer intensificação das chuvas e enchentes poderá haver maior incidência de doenças de veiculação hídrica. Se esse processo for acompanhado de aumento de temperatura, deverá haverá também aumento de casos de doenças como malária e dengue. Entretanto, as mudanças climáticas não significam apenas mais chuva e calor; em alguns locais poderá haver redução de quantidade de chuva, afetando a produção agrícola e a qualidade dos alimentos. Regiões que dependem de águas de regiões montanhosas também poderão ser gravemente afetadas pelo degelo decorrente do aquecimento.
Portanto, um aspecto central para a saúde pública é que determinados grupos populacionais e regiões do planeta são mais vulneráveis e precisam ser vistos com mais atenção, tornando o problema mais complexo. Em outras palavras, diferentes grupos sociais têm capacidades distintas de se precaver ou remediar tais impactos. Esse é o cerne da discussão sobre vulnerabilidade quando falamos de mudanças climáticas. Populações que vivem em ilhas, ou ainda aquelas que dependem de água dos Andes, serão mais atingidas se não houver recursos e políticas públicas específicas. A área da saúde deve se colocar em defesa dos grupos mais vulneráveis, pois estes serão os primeiros a sofrer as conseqüências dessas alterações. Na verdade, a vulnerabilidade é uma realidade, mas não é enfrentada de forma eficiente. Em boa parte, o destaque das mudanças globais passou a ocorrer na mídia quando os países ricos descobriram que poderão ser bem afetados – então, virou um risco para todos.
Marcelo Firpo: Em 2004, representantes de movimentos sociais se encontraram em Durban, na África do Sul, para discutir a questão do aquecimento global a partir da ótica das organizações populares. Nessa reunião, consolidou-se o conceito de justiça climática, que assume a visão de que alguns grupos sociais e territórios sofrerão maior impacto das mudanças climáticas. Um exemplo desses grupos são as populações das pequenas ilhas da Polinésia, como no caso de Tuvalu (um conjunto de ilhas cujo ponto mais alto fica dez centímetros acima do nível do mar), que negociou com a Nova Zelândia o direito de migração de toda a sua população se as ilhas ficarem inabitáveis (o que poderá acontecer em menos de 50 anos).
Firpo: uma questão de fundo central para as sociedades e a saúde coletiva é afirmar o valor ético da vida e lutar contra a sua mercantilização e da natureza como um todo |
Nos últimos 50 anos, a queima de combustíveis fósseis tem liberado dióxido de carbono e outros gases que afetam de forma irrefutável o clima global. A concentração atmosférica aumentou em mais de 30% desde o início do século 20. O resultado é o aumento do risco de doenças e de mortes, alterando o padrão de disseminação das doenças infecciosas. Uma das soluções apresentadas para melhorar esse quadro é o mercado de carbono, utilizado na Europa e nos EUA. Como está essa discussão no Brasil?
Milanez: O mercado de carbono não chega a ser uma solução para os impactos das mudanças climáticas, mas uma tentativa de ação paliativa. O Brasil participa do mercado de carbono por meio da implantação dos mecanismos de desenvolvimento limpo (MDLs), que permitem que projetos de baixo carbono em países em desenvolvimento gerem “créditos de carbono” para serem comprados por países industrializados e usados como compensação no cálculo de suas emissões, conforme estabelecido pelo Protocolo de Quioto. Dessa forma, há uma transferência de recursos financeiros de países industrializados para países em desenvolvimento, que são direcionados para atividades de específicas ligadas ao setor energético, a processos industriais, à agricultura, à gestão de resíduos urbanos e ao reflorestamento.
Entretanto, diversas críticas vêm sendo feitas a esse sistema. Em primeiro lugar, porque não reduz a iniqüidade entre países, permitindo que os países mais ricos e industrializados continuem a manter seu modelo de desenvolvimento, intensivo em energia (não-renovável) e recursos naturais à custa da degradação socioambiental dos países do Sul e, dessa forma, diminuem a pressão por mudanças culturais e tecnológicas mais profundas. Outro problema se refere às práticas de seqüestro de carbono por florestamento e reflorestamento, já que a quantidade de créditos computados não considera, por exemplo, os possíveis ganhos ou perdas em biodiversidade ao se optar por monoculturas ou espécies nativas. Ou seja, florestas de eucalipto, também chamadas criticamente de “desertos verdes”, podem valer a mesma coisa que florestas de verdade.
O Brasil tem posição de destaque no mercado de carbono, sendo o terceiro maior receptor de projetos de MDL. Entretanto, em termos efetivos, a participação do país ainda é tímida. Até março de 2008, o Brasil tinha sido responsável por apenas 6% da redução das emissões, enquanto que China participou com 49% e a Índia, com 23% das reduções. No Brasil, 63% dos projetos de MDL ocorrem no setor energia, que responde por 48% da redução de emissões. Neste setor, quase metade dos projetos diz respeito à produção de energia por biomassa, aproximadamente um quarto por hidrelétricas e um quinto por pequenas centrais hidrelétricas. Outros setores que vêm recebendo recursos de MDL são o de captação e tratamento de gases gerados por aterros sanitários (24% da redução) e o de suinocultura (6%).
Firpo: Os movimentos sociais apresentam uma série de críticas à forma como governos vêm lidando com as mudanças climáticas. Na sua visão, o mercado de carbono apresenta-se como uma iniciativa de transformar a atmosfera, por definição um bem comum, em uma mercadoria, que pode ser negociada como outra qualquer. Seguindo essa linha de raciocínio, o mercado de carbono legitima o “direito de poluir”, uma vez que empresas ou países adquirem o direito de manter atividades de alto impacto, desde que paguem por isso. Como posto por um economista do governo da Austrália em 2001, é mais “eficiente” evacuar as populações das pequenas ilhas do que exigir que as indústrias australianas reduzam sua emissão de carbono. Portanto, uma questão de fundo central para as sociedades e a saúde coletiva é afirmar o valor ético da vida e lutar contra a sua mercantilização e da natureza como um todo, revertendo os níveis insustentáveis e indignos que já acontecem em várias áreas, inclusive das biotecnologias.
O aumento do nível do mar já não é ameaça, pois já tem desalojado populações ribeirinhas. Mais da metade da população mundial vive a menos de 60 quilômetros do litoral. As inundações aumentam o risco de infecções causadas pela água contaminada. O Brasil é um dos países afetados por constantes enchentes. Como a saúde pública e a Ensp, especialmente, pode ajudar na prevenção e na busca de alternativas?
Milanez: As mudanças climáticas vão modificar padrões de clima e chuvas. Nesse sentido, as enchentes vão aumentar de intesidade em algumas regiões, independentemente da proximidade com o litoral e do aumento do nível do mar. Atualmente, já vemos grande quantidade de pessoas sofrendo com enchentes e inundações, principalmente entre os grupos mais vulneráveis.
As enchentes são causadas por fenômenos naturais, mas seus impactos são intensificados por ações antrópicas, relacionadas ao modelo de desenvolvimento e às iniqüidades que marcam a vulnerabilidade de territórios e populações. No campo, há problemas com o desmatamento de matas ciliares, ou uso inadequado do solo, o que aumenta a erosão e contribui para o assoreamento dos rios, que pode impactar cidades. Nas áreas urbanas, a ocupação inadequada do solo e a precariedade (ou inexistência) de sistemas de macro e micro drenagem são fatores que ampliam os impactos negativos das chuvas intensas. Por exemplo, a Fiocruz ocupa uma área de mangue, que possui maior predisposição a inundações, como já é conhecido de muitos moradores do bairro de Manguinhos.
Considerando que parte significativa das enchentes é resultado de problemas de infra-estrutura urbana, a margem de manobra da saúde pública é limitada e seu papel fundamental concentra-se na promoção da saúde e no estímulo às políticas intersetoriais, combinando ações locais e globais. Em primeiro lugar, podemos trabalhar junto à população, alertando-a sobre pequenas ações que busquem diminuir a pressão sobre os sistemas de drenagem, como a disposição adequada do lixo doméstico. Em segundo lugar, é preciso orientar sobre como agir em casos de enchentes, seja no momento da inundação para evitar acidentes, seja nos dias posteriores para evitar a contaminação por doenças de veiculação hídrica.
Não menos importante, existe a possibilidade do campo de promoção da saúde assumir a liderança do questionamento sobre a precariedade do saneamento ambiental no país e liderar a pressão por melhorias na infra-estrutura urbana, como um requisito para a garantia da saúde da população. Além disso, a Ensp certamente assumirá um papel importante nas ações já iniciadas pelo governo brasileiro, capitaneadas pelo Ministério da Saúde, no sentido de aprofundar o papel do setor no enfrentamento deste problema.
Como a discussão sobre mudanças climáticas se dá no âmbito do movimento de justiça ambiental, do qual você é um dos participantes e coordenador de projeto na Ensp?
Firpo: No âmbito do Brasil, o movimento por justiça ambiental vem alertando que a discussão sobre aquecimento global está sendo usada como justificativa para a manutenção de dinâmicas injustas, do ponto de vista social e ambiental. Em nosso país, a “preocupação” com as mudanças climáticas é usada como justificativa para a ampliação de monoculturas em grandes áreas, seja para produzir celulose ou substituir o carvão mineral, como no caso do eucalipto, seja para produzir agrocombustíveis, como a soja ou a cana. A expansão desse modelo de negócio é, então, acompanhada pela intensificação da degradação de ecossistemas, da concentração rural, do uso de agrotóxicos e, em alguns casos, de condições degradantes de trabalho. Além disso, ela cria situações altamente contraditórias, como foi o caso da valorização da terra no Centro-Oeste, que empurrou o gado para o Norte, aumentando a pressão sobre áreas de floresta nativa. Uma das ações da Rede Alerta contra o Deserto Verde, em conjunto com a Rede Brasileira de Justiça Ambiental, tem sido denunciar a tentativa perversa de transformar monoculturas de árvores em “florestas” que seqüestram carbono. Em verdade, sua expansão afeta diversas populações indígenas e rurais.
Uma outra discussão importante dentro do movimento de justiça ambiental é a competição entre o uso energético e alimentar dos produtos agrícolas. Por exemplo, em 2007, o aumento da demanda por milho nos Estados Unidos para produção de etanol levou à elevação em mais de 10% da tradicional tortilha no México, produto essencial na alimentação popular. Fenômeno semelhante em escala global ocorreu este ano, quando o Programa de Alimentos da ONU anunciou um aumento geral dos preços dos alimentos no mercado internacional. Segundo o órgão, a produção de agrocombustíveis era um dos fatores por trás dessa elevação de preços. Mesmo quando os produtos não são desviados da mesa das pessoas para os tanques de combustível dos carros, práticas agrícolas para produção de energia passam a competir por insumos (terra, agrotóxicos, adubo e financiamento) com os produtos alimentares. O resultado direto disso, ao menos no curto prazo, é um aumento geral dos preços dos alimentos.
Esse debate diz respeito não somente às mudanças climáticas globais, mas também ao modelo de desenvolvimento que vem sendo adotado pelo Brasil e boa parte do mundo num cenário de globalização injusta e insustentável. Esse modelo está baseado na perpetuação da divisão do trabalho entre países ricos e os demais, que são forçados a pensar no desenvolvimento a partir da produção de commodities agrícolas e metálicas (aço e alumínio), com um metabolismo social ambientalmente insustentável e socialmente injusto. O desafio é encontrarmos uma outra forma de globalização, mais solidária, justa e sustentável.