O assassinato de Isabella e NÓS: como superar a violência? Artigo de Frei Gilvander Moreira e prof. José Luiz Quadros de Magalhães
[EcoDebate] No dia 29 de março de 2008, Isabella Nardoni – uma criança de 5 anos – foi assassinada e jogada do 6o andar de um apartamento, em São Paulo. Uma turba do “pega e lincha” está ameaçando linchar parentes e os eventuais assassinos dela, esquecendo-se de um direito fundamental a um julgamento justo e a ampla defesa, que todas as pessoas devem ter. A mídia, de má qualidade, condena sem julgamento e induz o povo brasileiro a ficar só observando, discutindo e se posicionando sobre o caso.
Além de desviar a atenção do povo de tantos assuntos que devem ser discutidos e encarados, os principais meios de comunicação que ignoram tragédias diárias, iguais a essa, só porque acontecem com pessoas pobres, transforma essa notícia em quase única, violando direitos de privacidade e intimidade dos envolvidos. Precisamos ir além do que a mídia nos propõe para o debate diário e refletir sobre as diversas causas da violência. Como superá-la? Como construir uma sociedade de paz, com justiça social e sustentabilidade ecológica?
René Girard nos mostra que a violência é uma realidade humana permanente, cotidiana e universal, do âmbito privado até o familiar, da pequena sociedade até o Estado. Naturalmente tendemos à imitação. Por que desejar o que o outro deseja? Por que a criança prefere sempre o brinquedo de outra criança? Por que o rico da parábola de Natã (na Bíblia, 2o livro de Samuel 12,1-12) quer a única ovelha do pobre para oferecê-la a um hóspede? Assim, se estabelece uma briga de dois pelo mesmo “objeto”, porque o outro o deseja. Instala-se no ser humano uma rivalidade mimética, atribuindo ao objeto um valor que é dado a ele pelo outro, independentemente de seu valor intrínseco, eclodindo a violência.
Cada vez que a violência entre pessoas ou grupos se manifesta, é necessário eliminá-la, porque, do contrário, essa levaria à destruição do grupo social. A violência se manifesta potente e generalizada e, portanto, difícil de ser suprimida, mas também cega e fácil de enganar. É mais fácil canalizar a violência rumo a um objeto conhecido e, dessa forma, saciá-la, do que suprimi-la. Assim, por exemplo, a sociedade medieval queimava as bruxas para expulsar a peste que assolava toda a Europa.
As turbas do “pega e lincha” servem sempre para a mesma coisa. Os estadunidenses de pequena classe média que, no Sul dos Estados Unidos, no século XIX e no começo do século XX, saíam para linchar negros procuravam só uma certeza: a de eles mesmos não serem negros, ou seja, a certeza de sua diferença social. O mesmo vale para os alemães que, na noite de 10 de novembro de 1938, saíram para saquear os comércios dos judeus na Noite de Cristal , ou para os russos ou poloneses que faziam isso pela Europa Oriental afora.
Queriam, sobretudo, afirmar sua diferença. Arrumando um bode expiatório, diziam pela ação violenta: “Não temos nada a ver com isso. Somos diferentes. Violentos são eles. Violento é o outro”. Mas quem não tem nenhuma responsabilidade por tantas violências que acontecem na sociedade que atire a primeira pedra, podemos dizer, parodiando Jesus de Nazaré, pego como bode expiatório.
A vontade exasperada de afirmar sua diferença é própria de quem se sente ameaçado pela similaridade do outro. Os membros da turba gritam sua indignação porque precisam muito proclamar que aquilo não é com eles. Querem linchar porque é o melhor jeito de esquecer que ontem sacudiram seu bebê para que parasse de chorar, até que ele ficou branco. Ou que, na outra noite, voltaram bêbados para casa e não se lembram em quem bateram e quanto.
A turba do “pega e lincha” representa, sim, alguma coisa que está em
todos nós, mas que não é um anseio de justiça. A própria necessidade enlouquecida de se diferenciar dos assassinos presumidos aponta essa turma como representante legítima da brutalidade com a qual, apesar de leis e do Estatuto da Criança e do Adolescente, as crianças continuam sendo e podem ser vítimas dos adultos. Esse mecanismo se manifesta também quando a sociedade tecnológica descarrega sobre o inimigo – povo ou indivíduo – a responsabilidade pelo mal, e o pune com guerra, pena de morte, ou com bloqueio econômico ou isolamento perpétuo. É o que fazem os tiranos, com seus projetos de guerra sem fronteira, caracterizando o diferente como terrorista, membro do “eixo do mal”, como se eles encarnassem o bem. Confira Bush, o maior terrorista do mundo, na sua cruzada contra o “mal no mundo”.
O medo gera reações violentas e a recusa em ver no outro a similaridade no humano permite que façamos com esse outro (com ele, na terceira pessoa) o que jamais faríamos com aqueles com os quais nos identificamos. Isso ajuda a compreender porque a morte bárbara de uma criança pobre, vítima de diversas formas de violência, não seja notícia de jornal como a morte de uma criança de classe média. Enquanto isso permanecer, continuaremos vivendo com muita violência. Só quando formos capazes de ver, em cada pessoa, a humanidade presente em todos, teremos chance de viver em paz.
Somente quando qualquer forma de violência nos escandalizar, como nos escandalizou a violência contra Isabella, poderemos enfim viver em uma sociedade segura, com justiça e paz. Toda violência é intolerável, até mesmo a violência praticada contra aqueles que usam de violência.
A canalização da violência para uma determinada direção, verificável em nível individual, familiar, tribal e estatal, é uma reação primária que procura envolver emocionalmente todos os membros de um grupo ameaçado. O objetivo é prevenir uma possível violência ou pôr fim a uma situação violenta em curso. Assim se declara, por exemplo, uma guerra “santa”, contra um inimigo externo, para unificar um povo que atravessa uma crise social, cultural ou econômica, que poderia levar a uma guerra civil entre todos os membros daquela sociedade. Isso foi feito, por exemplo, pelos militares na ditadura Argentina. Deflagraram a guerra das Malvinas com o objetivo de angariar apoio popular internamente.
Nos primeiros dias depois do assassinato de Isabella, um adolescente morreu pela quebra de um toboágua, uma criança de quatro anos foi esmagada por um poste derrubado por um ônibus, uma menina pulou do quarto andar apavorada pelo pai bêbado, um menino de nove anos foi queimado com um ferro de marcar boi.
Centenas de crianças morreram de dengue, melhor dizendo, por causa de um sistema político e econômico corrupto, liderado por políticos profissionais e empresários inescrupulosos que dizem lutar pelo bem comum, mas, na realidade, usam os recursos públicos para desgraçar a vida do povo.
Centenas de jovens foram assassinados, cerca de 30 mil por ano. Pobres, negros e jovens estão sendo jogados nos presídios brasileiros, verdadeiras masmorras que reforçam um Estado repressor – agora propondo usar tornozeleiras em condenados – o que torna a prisão ambulante e fere fortemente a dignidade humana. Em 24 de junho de 2006, O número de presos no Brasil era de 361.402 pessoas, segundo o Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN). Centenas de assassinatos de trabalhadores Sem Terra, como os casos dos Massacres de Eldorado dos Carajás/PA, Felisburgo/MG ou o dos fiscais federais em Unaí/MG continuam impunes.
Por que o povo não se revolta contra essas violências, mas se revolta contra “as violências acidentais” trombeteadas aos quatro ventos pela mídia?
Frei Gilvander Moreira, e-mail: gilvander@igrejadocarmo.com.br
José Luiz Quadros de Magalhães, e-mail: ceede@uol.com.br
Belo Horizonte, 30/04/2008.