O consumo precisa ser solidário e responsável, artigo de Leonardo Boff
[O Tempo] O consumismo que a cultura do capital gestou está na base da fome de bilhões de pessoas e da atual falta de alimentos da humanidade. Face a tal situação, como deveria ser o consumo humano?
Em primeiro lugar, o consumo deve ser adequado à natureza do ser humano. Essa, por um lado, é material, enraizada na natureza e precisamos de bens materiais para subsistir. Por outro lado, é espiritual que se alimenta com bens intangíveis como a solidariedade, o amor, a acolhida e a abertura ao Infinito. Se essas duas dimensões não forem atendidas, nos tornaremos anêmicos no corpo e no espírito.
Em segundo lugar, o consumo precisa ser justo e equitativo. A Declaração dos Direitos Humanos afirma que a alimentação é uma necessidade vital e por isso um direito fundamental de cada pessoa humana (justiça) e conforme as singularidades de cada um (eqüidade). Não atendido esse direito, a pessoa se confronta diretamente com a morte.
Em terceiro lugar, o consumo deve ser solidário. É solidário aquele consumo que supera o individualismo e se auto-limita por causa do amor e da compaixão para com aqueles que não podem consumir o necessário. A solidariedade se expressa pela partilha, pela participação e pelo apoio aos movimentos que buscam os meios de vida, como terra, moradia e saúde. Implica também a disposição de sofrer e de correr riscos que tal solidariedade comporta.
Em quarto lugar, o consumo há de ser responsável. É responsável o consumidor que se dá conta das conseqüências do padrão de consumo que pratica, se suficiente e decente ou sofisticado e suntuoso. Consome o que precisa ou disperdiça aquilo que vai faltar na mesa dos outros. A responsabilidade se traduz por um estilo sóbrio, capaz de renunciar não por acetismo, mas por amor e em solidariedade para com os que sofrem necessidades. Trata-se de uma opção pela simplicidade voluntária e por um padrão conscientemente contido, que não se submete aos reclamos do desejo nem às solicitações da propaganda. Mesmo que não tenha conseqüências imediatas e visíveis, essa atitude vale por ela mesma. Mostra uma convicção que não se mede pelos efeitos esperados, mas pelo valor que essa atitude humana possui em si mesma.
Por fim, o consumo deve ser realizador da integralidade do ser humano. Este tem necessidade de conhecimento e então consumimos os muitos saberes com o discernimento sobre qual deles convém e edifica. Temos necessidade de comunicação e de relacionamentos e satisfazemos essa necessidade alimentando relações pessoais e sociais que nos permitem dar e receber e nesta troca nos complementamos e crescermos. Às vezes, essa comunicação se realiza participando de manifestações em favor da justiça, da reforma agrária, do cuidado pela água potável, da preservação da natureza, ou também vendo um filme, assistindo a um concerto, indo a um teatro, visitando uma exposição artística, participando de um debate. Temos necessidade de amar e de sermos amados. Satisfazemos essa necessidade amando com gratuidade as pessoas e os diferentes de nós. Temos necessidade de transcendência, de ousar e de estar para além de qualquer limite imposto, de mergulhar em Deus com quem podemos comungar. Todas essas formas de consumo realizam a existência humana em suas múltiplas dimensões.
Essas formas de consumo não custam e não gastam energia, pressupõem apenas o empenho e a abertura para a solidariedade, para a compaixão e para a beleza.
Tudo isso não traduz aquilo que pensamos quando falamos em felicidade?
Leonardo Boff, Teólogo
Artigo originalmente publicado pelo jornal O Tempo, MG, 25/04/2008