EcoDebate

Plataforma de informação, artigos e notícias sobre temas socioambientais

Artigo

A nação e os povos indígenas, artigo de Rodolfo Salm

[Correio da Cidadania] Eu estava na aldeia Aukre, uma localidade remota na Terra Indígena Kayapó, sul do Pará, naquele domingo em julho de 1998, quando o Brasil perdeu para a França a final da Copa do Mundo. Eu, os outros pesquisadores e os índios que nos auxiliavam diretamente na base de pesquisas saímos cedo de barco rio abaixo para ver o jogo em um local com uma televisão alimentada por gerador. As margens do rio, ladeadas por arbustos vistosos com flores amarelas, pareciam prenunciar a conquista do pentacampeonato. Eu já participara de várias festas tradicionais dos índios, mas o que assistiríamos então seria algo totalmente inédito: participaríamos todos pela primeira vez de uma autêntica festa nacional. Até hoje não se entendeu direito como aquele otimismo, que eu compartilhava com o resto do país, converteu-se na vergonhosa derrota por 3 a 0. Mas o que me chamou realmente a atenção ali foi um índio que, acabado o jogo, foi à beira do rio e colocou fogo em sua camiseta da seleção brasileira. Uma cena difícil de imaginar em qualquer outra parte do país, mesmo com a raiva pela apatia da seleção. O índio Moipatí não estava particularmente enraivecido ou exaltado. Tranqüilamente, me disse: “o Brasil nunca me deu nada”.

Cabem aqui algumas considerações. O próprio clima de expectativa e festa que cresceu também entre os índios ao longo da Copa, evento onde aflora com maior força o sentimento de identidade nacional para a maioria dos brasileiros não-índios, mostra que já houve uma grande assimilação cultural. Os Kayapó e, eu arriscaria dizer, os componentes de todas as grandes “nações indígenas” do Brasil se identificam como brasileiros e com a população do entorno. Apesar de no ponto de vista da assistência o Brasil ter dado pouco ou bem menos do que poderia, e aí estou de pleno acordo com o índio, não é exatamente verdade que “o Brasil” nunca lhes deu nada. Aos Kayapó, reconheceu, por exemplo, uma enorme extensão de terras contínuas, necessária para a sua sobrevivência física e cultural por um bom tempo. É verdade que todo o território onde hoje se localiza o Brasil já foi um dia dos índios, que foram sendo empurrados do mar para o interior e/ou dizimados, dada a violência imposta pelo colonizador, na base da garrucha, além das doenças trazidas pelos europeus. Mas aquela demarcação é um exemplo de compensação, mínima, poder-se-ia dizer, pelas barbaridades cometidas nos últimos séculos.

Lembrei-me deste episódio em meio a toda esta discussão sobre índios e nação, que ressurgiu junto com o debate sobre a questão da Reserva Indígena Raposa Serra do Sol, incendiada pelas recentes declarações do general Augusto Heleno. O comandante militar da Amazônia se colocou pública e enfaticamente contra o decreto do governo que homologou a reserva numa terra única e contínua de 1,6 milhão de hectares. A princípio, quando vi um pequeno fragmento de seu discurso na televisão, concordei com ele, porque a política indigenista do governo é realmente “caótica”, como ele bem disse. Depois, sem dúvidas, ele está correto quando diz que “a política indigenista brasileira está completamente dissociada do processo histórico de colonização do nosso país”. Isto porque a maior parte da história da nossa relação com os povos indígenas foi marcada, de forma geral, por massacres e extermínio, e agora estamos aos poucos mudando esta relação. Mas o militar defende, justamente por isso, pela política atual estar “dissociada do processo de colonização”, que ela seja revista com urgência.

Para a Folha de S. Paulo (em editorial de sábado, 19 de abril, não coincidentemente, dia do Índio), a fala do comandante militar da Amazônia implica em um retrocesso de pelo menos duas décadas na política de demarcação de terras indígenas, uma vez que o artigo 231 da Constituição de 1988 já reconheceu o direito dos índios à terra tradicionalmente ocupada. A Folha também destacou a gravidade da insubordinação do militar ao presidente da República e atacou o argumento de que a extensão da reserva seria demasiada para a população indígena local, observando que a área do estado fora de terras indígenas é do tamanho dos estados do Rio de Janeiro, Espírito Santo e Alagoas juntos, mas que vivem ali menos de 400 mil habitantes. O presidente Lula também cobrou explicações do comandante militar da Amazônia e se comprometeu com o plano atual de demarcação de Raposa Serra do Sol.

A temperatura deste debate subiu demais, atiçando a “inteligência” nacional, o que levou o debate para outros campos mais amplos. Refiro-me especificamente a um artigo de Demétrio Magnoli, publicado no dia 17 de abril em O Estado de S. Paulo e citado por Arnaldo Jabor no Jornal da Globo daquele mesmo dia (o que me chamou a atenção para o texto, curioso que fiquei sobre o que os setores reacionários estariam falando sobre o assunto). Para Magnoli, quando se discute o impasse sobre a reserva Raposa Serra do Sol, o que estaria realmente em jogo seria “o legado de Rondon” para o projeto de consolidação da unidade nacional. De um lado e de outro estariam as propostas de delimitação fragmentária e contínua das reservas. “A primeira, inscrita no projeto da nação única, admitia a interação de índios e não-índios que habitam a região e tinha como horizonte a idéia de integração”. A segunda “deriva da lógica multiculturalista da separação e tem como horizonte a criação de nações indígenas autônomas”. “Há ‘nações indígenas’ distintas da nação brasileira?”, pergunta Magnoli, para, afinal, concluir que a pergunta carece de sentido, pois nações “são inventadas na esfera da política”.

Estou acostumado ao termo “nação kayapó”, assim como com a “nação rubro-negra”, em referência à torcida do Flamengo (neste caso há um sentido bastante diferente, mas ainda assim ilustrativo de como o termo comporta vários significados). Apesar da atuação de “coalizões de ativistas bem conectados (às quais tenho orgulho de pertencer) e índios globalizados”, segundo as palavras de Magnoli elogiadas por Jabor, não vejo associada à expressão qualquer sinal de filosofia separatista que justifique alguma forma de temor minimamente fundamentado. Como eles poderiam se referir à idéia de “nação kayapó” sem fazer uso do termo “nação”? “Povo kayapó”, uma opção, não traz idéia do território, cujo usufruto constitucionalmente lhes cabe, nem por isso fazendo com que aquele seja um pedaço de chão menos brasileiro. Agora, quanto àquele sentimento de pertencer incondicionalmente ao grupamento nacional, na vitória ou na derrota, isso vai depender de quanto o país estiver disposto a lhes “dar” de assistência em áreas básicas como saúde e educação, mas também em respeito na forma do reconhecimento dos seus direitos constitucionais.

A assimilação dos povos indígenas é inevitável, seja a demarcação de suas terras feitas de forma contínua ou em ilhas. É claro que, se feita em ilhas, entremeadas por áreas controladas por não-indígenas brasileiros, a superfície de contato da sociedade indígena com a sociedade envolvente é maior, a assimilação tende a ser mais rápida e, conseqüentemente, mais brutal. Em Raposa Serra do Sol, acelerar desnecessariamente este processo, por causa de meia dúzia de arrozeiros que resistem em sair das terras há muito delimitadas, não contribui em nada para desenvolver ainda mais, dentre estes índios, o sentimento de brasilidade.

Rodolfo Salm, PhD em Ciências Ambientais pela Universidade de East Anglia, é pesquisador do Museu Paraense Emílio Goeldi.

Artigo enviado pelo Autor e originalmente publicado pelo Correio da Cidadania, 24-Abr-2008