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Zoneamento Ambiental do RS: um faz-de-conta. Entrevista especial com Paulo Brack

“Acompanho a área ambiental há pelo menos 30 anos e nunca tinha visto tamanha truculência e desrespeito aos técnicos da Sema. O que falo é compartilhado pela maioria dos técnicos de carreira da Sema, que também estão intimidados pela força de quem provem da Secretaria de Segurança.” Foi o que disse o professor Paulo Brack, em entrevista à IHU On-Line sobre o novo zoneamento ambiental do estado, apresentado há duas semanas pelo governo Yeda e pelos órgãos responsáveis pelo meio ambiente gaúcho. Tido como um dos maiores absurdos da governadora, este documento é visivelmente o resultado da pressão das papeleiras sobre a administração do estado.

Concedida por e-mail, Brack fala, nesta entrevista, sobre a atual situação da Sema e da Fepam, da relação das empresas de celulose com o governo e das ameaças que o resultado desse novo zoneamento pode causar ao pampa gaúcho. Para ele, o zoneamento pode aumentar a destruição dos habitats naturais com a conversão em monoculturas, “acarretando maior risco de extinção do que a já existente sobre o bioma pampa”, além da ocorrência da perda dos recursos genéticos da biodiversidade do meio ambiente rio-grandense, do aumento do desemprego no campo e da depreciação da paisagem natural.

Paulo Brack é biólogo e mestre em Botânica, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Obteve o título de doutor em Ecologia e Recursos Naturais pela Universidade Federal de São Carlos, em São Paulo. Atualmente, é professor da UFRGS.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Para o senhor, qual é a situação atual da Sema e da Fepam hoje?

Paulo Brack – Minha percepção é que a Sema (Secretaria Estadual de Meio Ambiente) foi desviada de sua função sob força de uma intervenção subliminar. Esta resposta pode ser encarada como um exagero por muitos que não acompanham tão de perto a questão. Então vou tentar melhor contextualizá-la a fim de entender o perfil dos atuais gestores da SEMA e o papel que desempenham. O Secretário da Sema ocupou a vaga da ex-secretária Vera Callegaro [1], em 18 de maio de 2007, com um propósito explícito de desobstruir as licenças ambientais, em especial as licenças da Silvicultura. O propósito de proteger o meio ambiente, atribuição da Sema, nunca ficou explicitado, e isso cobramos muito no Consema (Conselho Estadual de Meio Ambiente). O momento da troca ficou marcado pelo grande lobby das papeleiras, ou as pasteiras de celulose, como queiram chamar, e pela irritação da governadora que queria rapidez no processo e não aceitava as regras do Zoneamento Ambiental da Silvicultura.

Vera Callegaro, amiga de Yeda Crusius, nunca discordou da posição da governadora, entretanto, por ter uma trajetória vinculada à área de Meio Ambiente, não se descuidou em manter o processo legal de conceder licenças à luz da legislação, acompanhando o rito dos procedimentos técnicos que prezavam o zoneamento, como instrumento importante e amparado por lei. Talvez o principal motivo da sua saída do cargo de secretária teria sido o de que ela simplesmente obedeceria as leis e as regras do zoneamento, mesmo que promovendo uma reavaliação de seus itens, permitindo, inclusive, modificações que o governo e as empresas reivindicavam. Este governo, que faz questão de ser benevolente ao mega-capital investidor, mais do que outros seus antecessores, não iria tolerar barreiras ao mesmo. Para tal, nomeou para secretário, em substituição à Vera Callegaro, um procurador de justiça criminal, o senhor Carlos Otaviano Brenner de Moraes [2], que também havia perdido, recentemente, a nomeação em lista tríplice para procurador geral do Estado.

O novo secretário trouxe, também, para a Sema um promotor de justiça, Francisco Simões Pires, como secretário adjunto, e uma administradora para a presidência da Fepam (Fundação Estadual de Proteção ao Meio Ambiente), a ex- diretora da Secretaria Estadual de Segurança, Ana Pellini. A intervenção velada, além do estranho afastamento da ex-secretária, está corroborada pelo alijamento recorrente de técnicos de muita experiência nas questões centrais do licenciamento, em especial o da silvicultura, e com uma pitada de intimidação. O governo até teria razão em seu argumento de que existiam muitas licenças se arrastando por muitos anos na Fepam, porém a resolução deste problema implicaria em fortalecer o órgão que está se esfacelando, ano a ano, pela saída em massa de seus técnicos desvalorizados e muito mal remunerados. Este aspecto, para mim, representa também um processo mundial de concepção de Estado Mínimo, onde os mecanismos de controle do Estado se deterioram deliberadamente, frente aos interesses ilimitados do Mercado, cada vez mais globalizado e que derruba as alegadas barreiras de direitos sociais e ambientais.

Voltando à situação da Sema, o que percebo é uma situação profundamente triste, em que os técnicos do quadro são afastados de suas funções tradicionais e substituídos por CCs (cargos em comissão) e outros contratados temporariamente, por medidas compensatórias de empreendimentos impactantes, a fim de que sejam incondicionais a uma visão de desenvolvimento míope, muitíssimo atrasada e insustentável.

IHU On-Line – De que forma é possível conter o avanço e a pressão dessas papeleiras sobre o governo do Estado?

Paulo Brack – Primeiro, fazendo cumprir a lei. A Constituição Federal, em seu artigo 225, define que “todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem como de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de preservá-lo para as presentes e futuras gerações”. O zoneamento também é um instrumento previsto pelo Código Estadual do Meio Ambiente (Lei 11.520/2000), tendo sido aprovado pela Resolução no 084/2004 do Conselho Estadual do Meio Ambiente (Consema). O descompasso entre as leis e sua aplicabilidade, no Brasil, é um fato notório dos interesses de quem pode mais, sendo o argumento constantemente utilizado por parte do governo quando apela ao interesse público, como se interesse público fosse sinônimo do capital investido aqui.

Enquanto isso, as duas listas oficiais de espécies ameaçadas (flora e fauna), reunindo mais de 850 espécies, que foram publicadas em 2002, dormem nas gavetas governamentais a fim de não impedir o desenvolvimento econômico. Por estas e por outras, o governo do Estado está sendo acionado pelo MPF e por um conjunto de ações das ONGs para que cumpra a lei e defenda o meio ambiente. Infelizmente, alguns juízes ainda não perceberam o que significa sustentabilidade e o que representa a acelerada perda de nossa biodiversidade, em especial do Pampa, frente a um capital voraz e imediatista que vai debilitando a capacidade de suporte dos ecossistemas e a qualidade de vida neste Estado. Talvez tenhamos de visitar os juízes, como fazem, freqüentemente, o governo e as papeleiras, e pedir para expor nossos motivos de defender a biodiversidade, agora mais desprotegida por um zoneamento faz de conta.

IHU On-Line – Qual é a sua avaliação da profissional, da técnica e da representante da Fepam Ana Maria Pellini?

Paulo Brack – A senhora Ana Pellini mais parece um soldado da causa do mais forte. É incondicional aos interesses imediatistas deste governo. Acompanho a área ambiental há pelo menos 30 anos e nunca tinha visto tamanha truculência e desrespeito aos técnicos da Sema. O que falo é compartilhado pela maioria dos técnicos de carreira da Sema, que também estão intimidados pela força de quem provem da Secretaria de Segurança. Conversei com mais de quinze técnicos que conheço há muitos anos, que vestem e sempre vestiram a camisa da Sema. É uma tristeza geral. Confesso, sinceramente, que gostaria de estar errado. Mas todos os elementos levam-me a percepção de que as pseudo-travas da área ambiental estão na mira dos interesses dos grandes investidores e que têm seus aliados no governo. O que também nos preocupa muito é que a ex-diretora da Secretaria de Segurança parece prezar pela terceirização dos órgãos governamentais. No Detran, isso foi um desastre, para não utilizar outra palavra. Na área ambiental, a lógica da terceirização pode gerar maior fragilidade de controle de impactos nos ambientes naturais, seus processos e suas espécies. No caso previsível da extinção de espécies do bioma Pampa em decorrência da expansão incontrolada das lavouras, os danos seriam irreversíveis. No ano passado, quando as ONGs tiveram um encontro com o secretário da Sema e a presidente da Fepam, esta declinou de tocar no assunto das espécies ameaçadas pois não estava no âmbito de seu conhecimento.

IHU On-Line – É o fim do pampa gaúcho?

Paulo Brack – Os dados que possuímos em relação ao Pampa, segundo fontes dos especialistas da UFRGS e da Fundação Zoobotânica, denotam um quadro alarmante. A média anual de perda da área do bioma frente à expansão da fronteira agrícola e da silvicultura que, até a década passada, era de 136 mil hectares, aumentou em taxas que alcançam 400 mil hectares, em anos recentes, como afirma a professora Ilsi Boldrini, do Departamento de Botânica da UFRGS. Estas taxas dão conta de que o ritmo atual e crescente de conversão de ambientes naturais em lavouras, inclusive de árvores, poderá comprometer em mais de 90% do bioma no Brasil, em dez ou quinze anos. Centenas de espécies da flora e da fauna mostram-se ameaçadas nos ecossistemas pampeanos. A silvicultura, segundo dados das empresas de celulose, alcançaria mais de um milhão de hectares, o que corresponderia a quase dez vezes as áreas de proteção integral (parques e reservas) do Pampa no Brasil.

Estas estão concentradas no Litoral Médio e Sul e as demais, praticamente, não foram implantadas nas regiões da Campanha e da Serra do Sudeste. As duas regiões representam o coração do Pampa no Brasil. Há quase um ano da posse do atual secretário da Sema, inexiste qualquer plano apresentado ao Consema e à sociedade gaúcha em relação as supostas intenções de proteger o ambiente natural do Estado e incluir a biodiversidade, mantendo sua sustentabilidade sociocultural. Pior do que isso, a presidente da Fepam, declarou no final de 2007, que teria existido uma parceria entre a Sema e o governo federal para implantar as demandas de proteção ao bioma Pampa, o que foi, depois, desmentido categoricamente pelos representantes do Ministério do Meio Ambiente.

Agora, a presidente da Fepam admite que a responsabilidade em proteger as áreas naturais do Pampa deverá ser das próprias empresas, alegando falta de recursos e de infra-estrutura por parte do Estado. Porém não assinala para onde iriam os mais de cem milhões de reais, que devem ser destinados pelas empresas ao Estado, para aplicação nas unidades de conservação. Este recurso seria decorrente das compensações obrigatórias que constam na Lei Federal 9.985 de 2000, que institui o Sistema Nacional de Unidades de Conservação. Por esta Lei, obrigatoriamente, pelo menos 0,5% dos valores dos empreendimentos devem ir para o Estado investir nas áreas protegidas oficialmente.

IHU On-Line – Que tipos de ameaças ao nosso meio ambiente esse Zoneamento Florestal pode trazer?

Paulo Brack – Eu diria ameaças socioambientais já conhecidas do que se chama de desertos verdes, ou seja, áreas de monoculturas, muito extensas. Este pseudo-zoneamento é mais um instrumento ineficaz, em um País, premido por interesses econômicos, que parece ser especialista em documentos ineficazes. Quando foi concebido, em 2006, foi conduzido por pessoal altamente gabaritado e que trabalha na Sema, em sua maioria, há mais de vinte anos e possui uma trajetória admirável nas áreas de gestão do Meio Ambiente e de bioconservação. A concepção era muito boa para ser admitida e aceita pelo setor econômico mais retrógrado e que, lamentavelmente, comanda as ações do Estado há alguns anos. A retirada do estabelecimento de qualquer limite relativo ao máximo permitido de plantio por propriedade e por unidade de paisagem, associada à ausência de limites máximos ao tamanho dos maciços de monoculturas arbóreas e seus distanciamentos, deixou o ZAS como um instrumento completamente descaracterizado, perdendo sua principal essência e sua eficácia.

Os riscos decorrentes disso nós já conhecemos. Eu vou me limitar a quatro grandes ameaças: 1) maior destruição de habitats naturais e sua conversão em monoculturas, acarretando maior risco de extinção do que a já existente sobre o bioma pampa, quase totalmente desprotegido; 2) perda dos recursos genéticos da biodiversidade do Pampa, em especial as espécies de interesse atual ou potencial, algumas, que em seu conjunto, já correspondem a ganhos de bilhões de dólares em outros países, como no caso do veneno da jararaca, dos princípios ativos da cancorosa, do uso de plantas ornamentais como as petúnias, as verbenas, os cactos, entre centenas de espécies potenciais, em desconsiderar as dezenas de plantas forrageiras do campo nativo; 3) maior desemprego no campo pela dependência de um só tipo de cultura de ciclo longo, que demanda poucos tratos culturais, durante pelo menos sete anos; e 4) depreciação da paisagem natural, diversa, como atributo cultural e de interesse ao turismo, que também traz retorno econômico.

IHU On-Line – É hora de repensar o ambientalismo no estado? De que forma os ambientalistas deveriam agir nesse momento com esse novo zoneamento ambiental?

Paulo Brack – Na minha visão, as entidades ambientalistas raramente tinham sido tão perseverantes em uma questão como esta da silvicultura. Creio que as entidades e a academia contribuíram muito para ampliar o debate e fazer o contraponto. Infelizmente, a grande imprensa fez questão de isolar as vozes discordantes. Talvez isso, inclusive, tenha sido um motivo maior para gerar um maior descontentamento, que teve algumas conseqüências de indignação social por parte daqueles que perceberam o que estava acontecendo. As ações judiciais do ano passado de parte das ONGs e do Ministério Público Federal chegaram a complicar a vida do governo, o qual queria engavetar o zoneamento e continuar dando as licenças, caso a caso.

Depois das ações na justiça o governo mudou sua tática e teve de acelera o ZAS e discuti-lo com técnicos da Sema e os ambientalistas que fazem parte do Consema. Parece que o governo venceu esta batalha, pelo menos temporariamente. Utilizando-se de subterfúgios regimentais e de um documento vazio, aprovado na noite do dia 9 de abril. O presidente do Consema, o mesmo secretário da Sema, desprestigiou o Conselho, tendo que apelar para a derrubada de uma liminar que garantia mais do que três dias para a Agapan fazer o seu parecer referente ao pedido de vistas aos documentos das Câmaras Técnicas do Consema que podaram e desconstituíram o zoneamento, no último mês de março.

IHU On-Line – O governo estadual e os órgãos de proteção ambiental estão sendo levianos com as pressões das empresas de celulose que pretendem atuar no Rio Grande do Sul?

Paulo Brack – A palavra leviana parece ser forte. Eu somente gostaria de saber qual é o legitimo compromisso deste governo com a área ambiental e com a sociedade atual e futuras gerações. Eu e uma multidão que acompanhamos as questões ambientais neste Estado não conhecemos qual o plano para a referida pasta que não seja a agilização dos licenciamentos, custe o que custar. A assimetria é evidente entre os interesses imediatistas das empresas e do governo e o interesse social e ambiental da população. Nós, que participamos do Consema, gostaríamos de ver uma relação mais qualificada por parte do governo na área ambiental. No ano passado, as ONGs foram conversar duas vezes com o atual Secretário para apresentar as demandas da Apedema (Assembléia Permanente de Entidades em Defesa do meio Ambiente). A primeira reunião era para propor um cronograma de encontros. A segunda foi desfeita na última hora, sem justificativas plausíveis e não houve outra oportunidade.

IHU On-Line – Em que regiões as plantações de eucaliptos poderiam ser realizadas sem causar grandes impactos socioeconômicos e ambientais?

Paulo Brack – O zoneamento definiu as áreas com menor impacto, na metade norte do Estado. Também não falaria somente de eucaliptos. Os extensos plantios de pínus estão destruindo a paisagem e as nascentes e os reservatórios naturais de água dos Campos de Cima da Serra. As áreas mais propícias, assinaladas no ZAS, que requereriam a diluição dos plantios excluída do zoneamento, possuem ambientes já alterados. Ao contrário, as unidades de paisagem que se localizam na metade sul, principalmente na Serra do Sudeste, na Campanha, na Planície Costeira, e as dos Campos de Cima da Serra possuem riquíssima biodiversidade representada por diversidades de habitats e micro-habitats, como os afloramentos rochosos e seus endemismos, e as paisagens com seu conjunto de atributos insubstituíveis do ponto de vista socioambiental.

Notas:

[1] A ex-secretária estadual do Meio Ambiente Vera Callegaro é bióloga, museóloga, mestre em Botânica e doutora em Ciências pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

[2] Carlos Otaviano Brenner de Moraes é o atual Secretário do Meio Ambiente do Rio Grande do Sul. É procurador do Ministério Público Estadual e presidente da Associação do Ministério Público do estado.

(www.ecodebate.com.br) entrevista publicada pelo IHU On-line, 23/04/2008 [IHU On-line é publicado pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, em São Leopoldo, RS.]