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Notícia

Argentina: Mais soja e muito menos alimentos

Há dez anos, a soja ocupava cinco milhões de hectares de terra na Argentina. Hoje, toma 16 milhões. Esta ampliação enlouquecida está liquidando os cinturões de produção de hortaliças, verduras e frutas nas cidades, e aumentando os preços. Segue a íntegra do artigo de Roberto Navarro publicado no Página/12, 06-04-2008. A tradução é do Cepat.

O avanço da soja se reflete na mesa dos consumidores todos os dias e está colocando em perigo a segurança alimentar do país. Página/12 teve acesso a um relatório reservado do Ministério da Economia, baseado em dados da Secretaria da Agricultura e do Mercado Central, que revela o espetacular avanço da soja sobre o resto dos cultivos, base da dieta doméstica.

Há dez anos, essa olioginosa ocupava menos de cinco milhões de hectares. Atualmente, ultrapassa os 16 milhões. Foi tomando areas de outros cultivos, entre eles, as hortaliças e frutas, que cederam 200 mil hectares. Essa é uma das principais razões pelo aumento estrondoso das toranjas (295%) e dos limões (290%). A área destinada ao cultivo de frutas caiu quase 100 mil hectares. O mesmo aconteceu com as hortaliças: desapareceu o cinturão verde de Rosario e o mesmo está acontecendo com o de Santa Fe.

As plantações de hortaliças, nas zonas emblemáticas como La Plata e Florencio Varela, foram reduzidas em cerca de 80%. Assim, por exemplo, as hortaliças de folha perderam a metade da superfície que ocupavam. O resultado é que a alface no Mercado Central aumentou 282% desde o fim da convertibilidade e o tomate, 277%. A soja também avançou sobre os grãos tradicionais do pampa úmido: por exemplo, a última colheita de trigo foi de 14,5 milhões de toneladas.

Em 1998, o total da área plantada era de 26,2 milhões de hectares, das quais apenas cinco milhões eram destinados à soja. Atualmente, a fronteira agropecuária se estendeu para o norte do país com o que a superfície semeada estimada para 2008 seja de 30,2 milhões de hectares. Desses, 16,6 milhões serão semeados com soja. Ou seja, a área semeada total cresceu quatro milhões de hectares e a da soja, 11 milhões de hectares. Os sete milhões de hectares restantes da diferença é o que os outros cultivos perderam e também relativo à ampliação da fronteira agropecuária. A razão deste impressionante avanço é a rentabilidade dessa leguminosa, que se dá por vários motivos: seu altíssimo preço internacional, a possibilidade de fazer duas colheitas por ano e a fortaleza que lhe outorga sua semente geneticamente modificada.

Segundo o relatório do Ministério da Economia, por causa da espiralização do preço dos alimentos em âmbito internacional, em todo o mundo se debate o tema da segurança alimentar. No país, a soja já cobre 54% da área cultivada, mas apenas 2% dessa leguminosa é utilizado para consumo humano. 95% é exportado e o resto é utilizado como alimento animal.

O trigo, ao contrário, está na dieta dos argentinos. Sem se alongar muito, basta citar a farinha, o pão e as massas. Mas o grão, símbolo do pampa úmido, está perdendo espaço e peso na produção nacional. Dez anos atrás, ocupava 7,3 milhões de hectares; hoje, apenas 5,6 milhões. Por isso, se produziram 15,9 milhões de toneladas de trigo ao ano, em 2007, e apesar do enorme aumento da produtividade, a produção caiu para 14,5 milhões.

Os bifes, as batatas fritas e as verduras são um clássico na mesa dos argentinos. Para preparar todos esses alimentos utiliza-se óleo. Na maioria dos lares utiliza-se óleo misturado que contém 90% de girassol. Há dez anos, essa olioginosa ocupava 4,2 milhões de hectares, e atualmente apenas 2,3 milhões. O resto foi cedido para a soja. Assim a produção caiu de 7,1 para 3,5 milhões de toneladas. Junto com o aumento do preço internacional, esta míngua na produção derivou num aumento de 458% no preço interno da garrafa de um litro e meio de óleo misturado.

Os argentinos consomem 70 quilos de carne bovina per capita/ano. Cada vez mais produtores alimentam o gado com milho. Segundo um relatório do Departamento de Nutrição da Faculdade de Medicina da UBA [Universidade de Buenos Aires], no país se come frango ao menos uma vez por semana. Estas aves se alimentam 90% de milho. Também os suínos engordam com este grão. E com milho também se faz óleo.

Na última década a área plantada de milho diminuiu de 4,1 para 3,5 milhões de hectares. Mas o aumento de sua produtividade conseguiu que mesmo assim incrementasse sua produção de 19,3 para 21,7 milhões de toneladas. De qualquer maneira, este crescimento não é suficiente para acompanhar o desenvolvimento avícola, o novo modelo de alimentação do gado, o aumento do consumo interno e internacional. Assim, uma garrafa de um litro de óleo de milho subiu 580% desde 1999.

A Argentina é um dos países que têm o privilégio de ter soberania alimentar: seu território permite que plante o suficiente para produzir todos os nutrientes necessários para uma alimentação integral. Mas em pouco mais de uma década, diante da falta de políticas de Estado, o avanço da soja colocou em perigo essa soberania. No dia 11 de março, pela primeira vez o Estado teve um vislumbre de política agropecuária ao diferenciar as retenções da soja em relação ao milho e ao trigo com 20 pontos percentuais de diferença. Assim espera inibir o avanço da olioginosa, em detrimento do resto dos cultivos.

A fertilidade de suas terras e a variedade de seus climas deram historicamente ao país a possibilidade de obter de seu solo uma enorme variedade de alimentos. O arroz pode ser encontrado no prato de um operário ou acompanhando uma truta de cem pesos num restaurante cinco estrelas. Este grão chegou a ocupar 290 milhões de hectares há uma década em Províncias em que nunca foi visto um pé de soja; entre elas está Entre Ríos, o epicentro do conflito do campo. Em 2007, foram semeados apenas 168 mil hectares. O resultado foi que de 1,7 milhão de toneladas a produção caiu para um milhão. Assim seu preço já subiu 270% desde o fim da convertibilidade.

“É melhor que o Quaker”, ainda se diz quando se quer elogiar a generosidade de uma pessoa. Não é casual que se use a aveia como símbolo do bom. É o cereal que por décadas foi dado aos nenês de poucos meses como primeiro complemento alimentar, por seu importante componente nutritivo. Hoje, a soja a arrinconou e está em vias de desaparecer do campo argentino. Há dez anos ocupava 177 mil hectares; em 2007, apenas 66 mil. Sua produção caiu nesse lapso de tempo de 555 mil para 242 mil toneladas.

Outro cereal que conforma a enorme variedade nacional é o centeio, recomendado pelos nutricionistas. Geralmente é consumido no pão ou em rabanadas. Em apenas dez anos sua produção caiu de 120 mil para 54 mil toneladas e para 2008 são esperados menos de 40 mil toneladas.

A produção de tomate caiu 15% em dez anos. A alface perdeu a metade de sua área plantada. Os cítricos só retrocederam 2% na sua produção em dez anos. Mas, nesse intervalo o consumo cresceu 50%. Dessa forma, a soja avançou sobre o resto dos cultivos, colocando em perigo a segurança alimentar dos argentinos. A redução da produção tem como primeiro efeito o aumento dos preços; assim que, os primeiros a sofrerem o impacto do avanço da soja são os que menos têm.

Entre Ríos e Chaco

O núcleo do confltio com o campo foram as retenções da soja. Das 47,4 milhões de tonedas que se espera terminar de colher nas próximas semanas, 80% sairá do Pampa Úmido, área que abarca Buenos Aires, Santa Fe e Córdoba. Mas o conflito mais grave se deu em Gualeguaychú, Entre Ríos. Nesta Província se espera colher apenas 3,9 milhões de toneladas. Os produtores do Pampa Úmido conhecem a palavra retenções há muitos anos. Entre Ríos não.

Há dez anos, 85% do campo de Entre Ríos era destinado ao cultivo de arroz e 10% de cítricos. Mas apareceu a soja e em dez anos a produção de arroz caiu de 970 mil para 408 mil toneladas em 2007. Para 2008, estima-se o plantio que resultará numa produção inferior a 390 mil toneladas. Das 700 mil toneladas de arroz que o país perdeu, 500 mil foram de Entre Ríos.

Mas os protestos têm certa lógica: viveram a riqueza do Pampa Úmido alguns anos e não querem perdê-la. Quando o Estado chegou para corrigir o erro já se haviam acostumado. Agora vai ser difícil convencê-los a plantar novamente arroz.

Um caso similar acontece no Chaco, a Província do algodão. Numa década passou da produção de 156 mil toneladas para 1,3 milhão de toneladas de soja. Mas a leguminosa substituiu o tradicional algodão, que mesmo que seu preço tenha aumentado em 60% apenas em 2007, rende muito menos que a soja. Assim, viu despencar sua produção de 1,4 milhão para 545 mil toneladas em dez anos.

A soja tmabém avançou sobre zonas que ninguém teria imaginado, como La Matanza, La Plata, Pilar e San Pedro. Este último povoado se caracterizava como um dos pilares dos cítricos no país e onde aconteceu um dos cortes de estrada mais aguerridos.

Aqui a olioginosa teve um aliado para ganhar espaço: a mudança climática. As geadas do ano passado terminaram por convencer os fruticultores a passar a um cultivo mais resistente. Alguns se converteram em produtores de soja, outros se associaram em pools. Por isso a reação quando as retenções móveis foram anunciadas: seria a primeira vez que iriam ver tanto dinheiro.

Outro caso extremo é o do centeio em La Pampa. Essa Província tem as características específicas para a produção desse cereal. Em 1998, 75% da produção nacional saía de La Pampa. No total, 90 mil toneladas. Em 2007, foram produzidas apenas 19 mil toneladas.

(www.ecodebate.com.br) publicado pelo IHU On-line, 10/04/2008 [IHU On-line é publicado pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, em São Leopoldo, RS.]