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Artigo

Exploração não criminosa na Amazônia é desejo fantasioso, artigo de Rodolfo Salm

[Correio da Cidadania] A revista Veja publicou, agora, na última semana de março, um “Especial Amazônia”, que traz em destaque na capa a imagem de uma floresta vista do alto, marcada por um brasão de fogo em forma de cifrão sobre as manchetes “A verdade sobre as queimadas e o ritmo do desmatamento” e “Por que a exploração econômica não precisa ser criminosa”.

“A floresta é um templo”, é o título do editorial da edição, onde a Veja tenta decidir de forma confusa se a floresta é ou não é um templo. Primeiro, cita o biólogo Edward Wilson, que comparou a selva amazônica a uma catedral, “que deveria despertar em todas as pessoas sentimentos simultâneos de temor e admiração”. Em seguida, de maneira criativa, não ataca a metáfora do templo, como usualmente faz o argumento desenvolvimentista. Ao contrário, diz que também “encara a região como uma catedral”. Mas “não propriamente na conotação reverencial que lhe empresta o biólogo de Harvard”.

A descrição de como a floresta seria um templo é uma pérola que só transcrevendo: “Como a nave e os altares de um templo, a Amazônia também possui regiões que podem abrigar altas concentrações humanas ao lado de outras que são sagradas do ponto de vista da biodiversidade, áreas em que a atividade econômica pode ter efeito devastador não apenas sobre a manutenção da vida local, mas sobre todo o mecanismo climático do planeta”. Quer dizer que na catedral amazônica da Veja há áreas (aquelas que podem abrigar altas concentrações humanas) que não são “sagradas”, em que a “atividade econômica” provavelmente também nem teria efeito devastador sobre a vida local e o planeta? Além do mais, nas igrejas, as “concentrações humanas” geralmente estão ocupadas em contemplar e não em destruir o templo.

Segue então, por 14 páginas, a reportagem especial de Leonardo Coutinho e José Edward “A verdade sobre a saúde da floresta”. A reportagem parte da observação correta de que as notícias sobre a Amazônia são muitas vezes contraditórias, ora dando a entender que a selva nunca esteve tão protegida, ora que sua morte é iminente. Aí os jornalistas enrolam-se ao tentar resolver o problema da sorte da floresta amazônica, sintetizado em um gráfico que descreve quatro cenários com projeções de desmatamentos para os próximos 50 anos, de “otimista” a “catastrófico”, passando por “realista” e “pessimista”, que variam de 20% a mais de 40% da floresta desmatada (lembre que cerca de 17% já foram embora).

Digo que os jornalistas enrolaram-se na resposta porque, abaixo de cada cenário, colocaram um reloginho marcando o grau de probabilidade de ocorrerem: baixo, médio e alto. Acertadamente eles classificaram como alta a probabilidade de ocorrer um desmatamento de 40% da mata, mas… peraí. Esse é o cenário “pessimista”. Como pode haver um cenário “realista” com probabilidade de ocorrência menor (média)?! Leonardo Coutinho e José Edward sabem (ou deveriam saber) que o mais provável é que realmente seja mantido o ritmo atual de desmatamento e que os cenários pessimista e catastrófico são, na verdade, os realistas. Mas, com a brincadeira das palavras, o leitor da Veja é levado, se não a ser “otimista”, como é sempre muito melhor viver, a ser pelo menos “realista”, esperando um desmatamento de 27% em uma situação na qual “o governo consiga colocar um programa que faça funcionar as unidades de conservação, (…) e puna quem desmate além do permitido”. Ao invés de “realista”, esse eu já chamaria de cenário-Poliana, “pra lá de otimista”.

Nas páginas de gráfico centrais, os jornalistas fazem uma comparação interessante, mas que também pode induzir o leitor a um erro, como pretendo demonstrar. Eles comparam a área total das duas páginas da revista aberta (27 x 40 cm) a dois retângulos coloridos desenhados no canto da página, um maior (de 10 x 16 cm), que representa os 700 mil quilômetros quadrados desmatados nos últimos 45 anos, e outro menor (de 7 x 10 cm), que marca os 356,5 mil quilômetros quadrados desmatados nos últimos 20 anos. Se estivessem reunidos assim, apenas em um “canto” da floresta (quem dera), os desmatamentos atuais (que se alastram como nunca por praticamente todas as partes da Amazônia) seriam bem menos graves. Mas, dispersos como estão, são indicativos de uma iminente explosão da devastação por toda a região, além de pulverizarem e multiplicarem seus efeitos negativos.

Para completar a edição especial, a cereja do bolo da Veja é o artigo final, assinado pelo economista Gustavo Ioschpe: “E se plantássemos cérebros?”. Com uma conta esdrúxula que considera as florestas federais e as reservas obrigatórias da área da Amazônia Legal e do resto do país, o economista conclui que apenas pouco mais de um terço de nosso território nacional é realmente para os brasileiros e para os animais de criação, que dão lucro aos seres humanos. O restante seria destinado por lei para as árvores e os animais selvagens. Além de desconsiderar que as áreas de reserva legal e de preservação permanente são sistematicamente ignoradas (basta andar pelo interior dos estados do Sul e Sudeste procurando os 20% que cada propriedade deveria manter), o colunista trata as áreas de reserva como um bloco separado. O mesmo artifício usado na comparação dos retângulos da página dos gráficos da matéria principal.

Ele desconsidera ainda os efeitos positivos das áreas preservadas sobre o solo, os rios, o clima, a vida das populações locais e, ainda por cima, a economia. “Enquanto uma massa de brasileiros vive em condições subumanas, sinto-me moralmente impedido de defender a preservação do mico-leão dourado” — como se a preservação do mico-leão dourado pudesse de alguma forma prejudicar a massa de brasileiros que vive em condições sub-humanas (aliás, sua preservação tem até tido o potencial de ajudar comunidades que vivem próximas às minúsculas áreas de ocorrência da espécie, com o desenvolvimento de ecoturismo e de outros projetos tocados por ONGs). “Faz sentido, em um país com os nossos índices de criminalidade, com os nossos problemas de tráfico de drogas e contrabando nas fronteiras, deslocar mil homens da Polícia Federal para vigiar madeireiras no Pará, como o governo acaba de anunciar?” – então nem as madeireiras devem ser vigiadas? Ele esquece-se também que a atividade madeireira ilegal também é crime e, portanto, também entra nos índices de criminalidade, além de estar associada a outras práticas criminosas, como contrabando de madeira, corrupção de funcionalismo público etc. O colunista cita os altos índices brasileiros de analfabetismo funcional e pergunta como seria se nossa energia, ao invés de ser “despendida na preservação de florestas e animais selvagens”, fosse investida na educação — como se fossem áreas incompatíveis.

A mata além da fronteira agrícola não é destruída pelo fato de ser inacessível, até um dia em que um fazendeiro abre uma estrada para lá, para desmatar os 20% a que tem direito (e normalmente um bom naco do que NÃO tem direito), e então ela se torna imediata e inevitavelmente vulnerável.

Para mim, é respondendo à questão de “quanto é aceitável desmatar para dar lugar ao agronegócio” que Leonardo Coutinho e José Edward expõem mais claramente o posicionamento da publicação: “Uma coisa é certa: os fazendeiros estabelecidos na região não são criminosos porque derrubam parte da floresta para tocar seu negócio [bem, de acordo com a lei de crimes ambientais, eles o são se desmatarem além do permitido, mas moralmente falando o assunto é outro]. Eles contribuem para o desenvolvimento da Amazônia [pouco], criam empregos [poucos no caso da soja, mecanizada, e da pecuária, extensiva] e somam pontos ao PIB do país [a que preço futuro para a nossa própria economia?]. O que precisa ser combatido é o desmatamento selvagem [quase todo ele é selvagem]”.

Esta afirmação seria menos equivocada se todo esse desmatamento pudesse ficar reunido no canto da página, como nos gráficos da Veja. Mas o fazendeiro, que tem terras além da fronteira agrícola, se quiser desenvolver sua fazenda, é obrigado a abrir uma estrada no meio da mata para chegar à fazenda onde poderia desmatar os seus 20%. Então, respondendo à pergunta na capa da revista, a exploração econômica “não precisa ser criminosa” somente e simplesmente porque a Veja bate o pé e quer que não seja. Criminosos, para a Veja, seriam os sem-terra, que vêm pela mesma estrada, aberta pelo “bom” fazendeiro, e impedem a preservação da Reserva Legal.

Rodolfo Salm, PhD em Ciências Ambientais pela Universidade de East Anglia, é pesquisador do Museu Paraense Emílio Goeldi.

Artigo originalmente publicado pelo Correio da Cidadania, 26-Mar-2008