A colheita da fome
Mais de 800 milhões de pessoas estão ameaçadas pelo aumento de preços da comida, alertam os dirigentes do Programa Mundial de Alimentos, conduzido pela ONU. “Emergência global” foi a expressão usada em carta distribuída pela organização, nesta semana, para descrever a situação das populações famintas. Para ajudar os muito pobres a comer, o programa demandará neste ano US$ 3,4 bilhões, meio bilhão a mais que o total previsto no orçamento original, segundo a nova estimativa. O cumprimento da missão dependerá, portanto, de novas doações. O cenário é dramático, mas não é novo, e as explicações enumeradas pelos autores da carta só mencionam as causas de curto prazo. Passam longe das causas econômicas e políticas mais importantes, como a herança do colonialismo na África e o tradicional protecionismo comercial do mundo rico. Publicado pelo O Estado de S.Paulo, 28/03/2008.
Os preços da comida aumentaram em média 40% desde julho de 2007, segundo o levantamento da ONU, e isso é atribuído a quatro fatores principais: o encarecimento do petróleo, a expansão do mercado consumidor nas economias emergentes (a China, com sua população de 1,3 bilhão de pessoas, é o caso mais agudo), o aumento de períodos de seca e o uso de terra para produção de biocombustíveis.
No caso dos biocombustíveis, o documento menciona particularmente os EUA, onde grande volume de milho tem sido usado para a produção de etanol. Num estudo anterior, também o Brasil foi apontado como responsável pela alta de preços, por causa da fabricação de álcool de cana. O autor desse trabalho anterior, o suíço Jean Ziegler, acabou reconsiderando sua opinião, ao reconhecer as diferenças entre o uso da cana e o do milho para a produção de álcool.
Mas o reconhecimento desse detalhe, embora importante, ainda é insuficiente para uma avaliação realista do problema. A produção de álcool de milho só é possível com enormes subsídios. O problema, portanto, não decorre de uma decisão comercial sobre esta ou aquela destinação das terras, mas de uma distorção nas condições de comércio. O Brasil, portanto, é também prejudicado por essa política, e não apenas os países com grandes massas de famintos.
Esses países, principalmente os africanos, têm sido prejudicados pelos subsídios e pelas barreiras do mundo rico há muito tempo. As distorções não começaram com a produção de biocombustíveis em grande escala. Mas os Estados Unidos e a União Européia resistem à abolição de suas barreiras comerciais e de seus pesados subsídios, embora a liberalização dos mercados agrícolas seja um dos objetivos centrais da Rodada Doha de negociações comerciais. O cumprimento da agenda de Doha seria um passo importante para ampliação de oportunidades comerciais para os países pobres. Importante, mas insuficiente.
Os países pobres da África estariam em condições econômicas e sociais muito melhores, apesar do encarecimento do petróleo e dos alimentos, se os programas de desenvolvimento agrícola adotados nas últimas décadas não houvessem fracassado. O fracasso foi reconhecido em recente relatório do Grupo de Avaliação Independente do Banco Mundial. O documento examina os programas adotados para a África Subsaariana, uma região com 47 países, mais de 700 milhões de habitantes, pelo menos 1.000 grupos étnicos e sete histórias coloniais diferentes. Em 20 anos o número de pobres duplicou e chegou a 300 milhões. Os programas foram mal concebidos e o dinheiro foi pulverizado em atividades sem coordenação. Houve até casos de sucesso na pesquisa, mas falhou a transmissão do conhecimento. A produtividade ficou estagnada e desde o começo dos anos 70 a produção foi insuficiente para acompanhar o crescimento populacional.
Se a isso se acrescentarem os conflitos étnicos, as guerras civis e o baixo grau de organização política e institucional deixados pelo domínio colonial extinto há poucas décadas, estará plenamente explicado esse quadro de miséria. Mas ainda há quem atribua a fome na África à produção de álcool pelo bem-sucedido agronegócio brasileiro.