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Artigo

Transposição do rio São Francisco: inviável tecnicamente, artigo de Frei Gilvander Moreira

[EcoDebate] De forma sintética, apresentaremos abaixo argumentos “técnicos” dos mais entendidos no assunto, os citados acima. O professor João Abner, por exemplo, demonstra que há um projeto de Transposição fantasioso, vendido à opinião pública por um forte marketing oficial e pela mídia. E há outro projeto real de transposição que está sendo sistematicamente ocultado do povo, pois é perigoso, injusto, insano e faraônico.

O projeto atual de transposição é igual ao do governo FHC, com a mesma infra-estrutura e orçamento. Compreende um conjunto de grandes obras hidráulicas (estações de bombeamento, canais de 25 metros de largura por 5 metros de profundidade, o que dá para transportar até 127m3/s de água – o equivalente a 2,5 vezes o abastecimento da capital de São Paulo – e túneis) com capacidade de transferência de 127 m³/s de águas do rio São Francisco para apenas 8 (oito) dos maiores reservatórios da Região, seguindo dois eixos – norte e leste. A captação do Eixo Norte é em Cabrobó (PE), abastecendo os rios Jaguaribe (CE), Piranhas-Açu (PB/RN), Apodi (RN) e Brígida (PE). O Eixo Leste interliga o rio São Francisco com os rios Paraíba (PB) e Moxotó (PE), com um bombeamento diretamente do reservatório de Itaparica (PE). Os canais do eixo norte, por onde correrão 71% dos volumes transpostos, passarão longe de alguns sertões menos chuvosos e das áreas de mais elevado risco hídrico. E 87% dessas águas serão para atividades econômicas altamente consumidoras de água, como a fruticultura irrigada, a criação de camarão e a siderurgia, voltadas para a exportação e com seríssimos impactos ambientais e sociais. Os destinos da transposição os EIAs/Rima esclarecem: 70% para irrigação e uso industrial, 26% para uso urbano e somente 4% para população difusa.

Os estados do Ceará e Rio Grande do Norte não precisam da água do rio São Francisco tendo em vista que os estoques de água são suficientes para atender plenamente e com segurança as demandas atuais e futuras, dentro de um projeto de Convivência com o Semi-árido e desenvolvimento sustentável. Para isso, se requer infra-estrutura adequada de acesso e distribuição de água e um programa de gestão eficiente dos seus recursos hídricos.

Ao contrário do discurso oficial, não existe déficit hídrico global no Nordeste Setentrional que justifique um projeto da magnitude da transposição do Rio São Francisco. A análise dos planos de recursos hídricos da Região Nordeste Setentrional revela um balanço hídrico favorável nos estados receptores, principalmente, quando se compara com a realidade hídrica atual da bacia do rio São Francisco. Os 13 milhões de habitantes da bacia dispõem de apenas 360 m³/s para atender os diversos usos consuntivos –, dado que 80% da água do rio (1500 m³/s) é empatado com a geração de energia para o NE.

A disponibilidade hídrica per capita da região beneficiada é semelhante a dos moradores da bacia do rio São Francisco, porém com um nível de comprometimento bastante inferior. Para exemplificar, em primeiro lugar, o estado do Ceará com uma população de 7,5 milhões de habitantes apresenta uma oferta potencial de 215 m³/s para atender um consumo atual de cerca de 54 m³/s. Em segundo lugar, o estado do Rio Grande do Norte com uma população 2,7 milhões de habitantes dispõe de uma vazão garantida de 70 m³/s para atender uma demanda de 33 m³/s. Até mesmo o estado da Paraíba, que é o menos dotado de recursos hídricos da Região, apresenta-se com um superávit significativo, pois sua disponibilidade é de 32 m³/s para uma demanda de 21 m³/s. Ou seja, o Ceará tem potencial hídrico para atender com segurança em até quatro vezes as demandas atuais por água para todos os usos; o Rio Grande do Norte mais de duas vezes e a Paraíba uma vez e meia. Um relatório elaborado em 1995, pela FUNCATE (http://www.funcate.org.br/) – órgão credenciado pelo MEC e MCT como instituição de apoio às organizações governamentais de pesquisa e desenvolvimento -, sobre as questões hídricas do Nordeste, afirma, categoricamente, que não há déficit na região que venha a impedir ou mesmo comprometer o abastecimento humano e que, diante do potencial hídrico existente, a transposição do rio São Francisco constitui-se numa obra desnecessária.

A transposição do Velho Chico é um projeto politicamente inconseqüente, economicamente inviável, socialmente injusto e ecologicamente covarde. Bastaria qualquer uma dessas quatro condições ser verdadeira para justificar o abandono do projeto. A transposição é politicamente inconseqüente porque gera um conflito na federação brasileira e nos estados do Nordeste que será permanente, com tendência a se agravar – uma briga pelo uso da água. O rio é da “integração nacional”, mas a transposição é obra de desintegração nacional, pois, no momento em que se tira água da bacia do São Francisco para levar para o Ceará, Paraíba e Rio Grande do Norte (os estados receptores), uma injustiça é cometida com o povo doador (alagoanos, baianos, mineiros, pernambucanos e sergipanos) que possui disponibilidade hídrica de 360 metros cúbicos por segundo (m³/s) para abastecer uma população de 13 milhões de pessoas. No Ceará, por exemplo, a disponibilidade per capita é melhor: 215 m³/s para 7,5 milhões; sendo que fenômeno semelhante acontece também com o Rio Grande do Norte. Outro aspecto fundamental é que, na bacia do São Francisco, 335m³/s dos 360m³/s de água disponível já está comprometida. Portanto, os 25m³/s que o governo diz que vai tirar, não é pouco, mas sim o que resta de água ainda não outorgada no rio. Esse número de 1% (o governo alega que vai retirar apenas essa quantidade) é relativo à vazão média na barragem de Sobradinho. Mas essa não é uma boa referência. Deve-se trabalhar com a vazão firme (aquilo que é garantido que o rio vai ter, mesmo em períodos de seca), que é de 1.860m³/s. Desses, apenas 360 estão disponíveis. O resto, 1.500m³/s, já são utilizados para a produção de energia elétrica. E essa água tem uma função importantíssima: 95% da energia do Nordeste é de fonte hidráulica – uma fonte barata.

É um erro dizer que o São Francisco está desperdiçando água no mar. O ecossistema marinho depende desta água para se manter vivo.

A água do São Francisco tem maior utilização como geradora de energia. É daí que vem o segundo conflito gerado pela transposição. Um conflito nacional. Como o sistema CHESF (Companhia Hidrelétrica do São Francisco) já está funcionando no seu limite, a transposição vai implicar numa mudança muito grande na matriz energética no Nordeste uma vez que será necessário trazer energia de fora ou gerá-la por meio de termoelétricas, o que polui mais e é mais caro. Além disso, terá que se produzir energia para a transposição e para os usos da nova água nos estados receptores; para não falar da água que vai ser retirada com a transposição. A implicação disso tudo é um aumento de custo da energia elétrica em todo o sistema nacional.

O IBAMA, que deu o aval, forneceu, sem querer, argumentos contra o projeto. Reconhece que 70% da água será para a irrigação e 26% para o abastecimento de cidades; que a maior parte da água transposta irá para açudes onde se perde até 75% por evaporação; que 20% dos solos que se pretendia irrigar “têm limitações para uso agrícola” e “62% dos solos precisam de controle, por causa da forte tendência à erosão”.

A razão maior da transposição é levar água para sustentar um grande projeto de desenvolvimento econômico que inclui siderurgia, indústrias têxteis e fazendas de criação de camarões “carcinicultura”, sabidamente vorazes consumidores de água, tudo isso para exportação, principalmente. O pólo industrial e o porto de Pecem, ao lado de Fortaleza, estão dentro desta lógica. Somente a Ceará Steal consumirá água suficiente para abastecer uma cidade de 90 mil habitantes. No Rio Grande do Norte, existem cerca de 10 mil hectares com projetos de carcinicultura, os quais chegam a demandar 8 m³/s de água, mas o estado só irá receber do projeto de transposição um volume equivalente a 1,8 m³/s. No Ceará já existem mais de 260 fazendas de criação de camarão. Entre as barragens Castanhão e Itaiçaba existe um consumo de água de cerca de 58.874 m3 por hectares, tudo no hidronegócio de camarões.

O DNOCS , rico de obras por todo o Nordeste e prenhe de experiências ao longo do século 20, perenizou 3.320 km de rios e riachos intermitentes, de leitos dessecados, superior ao comprimento do rio São Francisco, da sua nascente à foz (3.161km) e não resolveu o problema hídrico do Nordeste.

O projeto de transposição do Rio São Francisco é um verdadeiro presente de grego para todos os setores da economia do semi-árido, porque a água que chegar ao destino final terá um custo elevadíssimo. Toda a economia de produtos irrigados do Nordeste se destina ao mercado externo. Dessa forma, exportamos água para a Europa, via produtos. E os europeus, com uma disponibilidade muito menor de água, a compram muito mais barata. Dentro dessa lógica, a transposição se constitui um projeto muito atrasado. Na economia globalizada, não se imagina um projeto desse tipo: elevar o custo do insumo (a água) ao invés de baratear. A transposição vai aumentar em cinco vezes o custo da água e o governo, para responder a esse obstáculo, aponta como solução o “subsídio cruzado” – sistema que o Banco Mundial defende em várias partes do mundo, inclusive na paupérrima África. Está previsto que 85% da receita do projeto deverão ser gerados pelos consumidores de água situados no meio urbano das grandes cidades da Região Nordeste Setentrional, que na atualidade não precisam desta água e já subsidiam o abastecimento hídrico humano do interior dos municípios.

A transposição é a sofisticação da indústria da seca. Os beneficiados serão as empresas da construção civil e os grandes empresários locais. A região Nordeste tem o maior índice de açudagem do mundo – 70 mil açudes construídos em um século – e uma grande capacidade de armazenar água. Os projetos já feitos nunca tiveram cunho social. A política hidráulica do Nordeste não está atrelada a uma reforma hídrica e nem agrária para oferecer acesso a essa água. Só que a transposição é ainda mais prejudicial do que as típicas obras da indústria da seca. Ela não demanda apenas investimentos na construção, a população vai pagar um preço constante. Todos, principalmente os que não têm acesso a água da transposição, vão pagar pela água. Por trás de tudo isso está um lobby poderoso que se encontrava infiltrado nos partidos políticos e na máquina do governo e que defende a manutenção da velha política de grandes obras hidráulica no Nordeste: a verdadeira e atual indústria da seca na região.

O geógrafo Aziz Ab’Sáber, no artigo “A quem serve a transposição?”, afirma: “O risco final é que, atravessando acidentes geográficos consideráveis, como a elevação da escarpa do Araripe – com grande gasto de energia! -, a transposição acabe por significar apenas um canal tímido de água, de duvidosa validade econômica e interesse social, de grande custo, e que acabaria, sobretudo, por movimentar o mercado especulativo, da terra e da política. No fim, tudo apareceria como o movimento geral de transformar todo o espaço em mercadoria.”

Enfim, a transposição não é destinada a salvar os nordestinos da seca, pois apenas uma minoria irrelevante do semi-árido receberá água na porta, mas se destina ao hidro e agronegócio, que utilizará uma água caríssima, levada a 700 km, que terá de ser subsidiada a vida inteira. O governo Lula, maquiavelicamente, esconde uma realidade que surpreenderia a nação: não há falta de água no Nordeste setentrional. O que urge ser feito é democratizar o acesso à água existente. O rio São Francisco está na UTI e a transposição ameaça provocar sua morte, gerando o maior desastre ecológico e socioeconômico da história brasileira.

Frei Gilvander Moreira, Frei Carmelita, mestre em Exegese Bíblica, professor de Teologia Bíblica, assessor da CPT, CEBs, SAB, CEBI e Via Campesina, colaborador e articulista do EcoDebate. E-mail: gilvander@igrejadocarmo.com.br , http://www.gilvander.org