As empresas, a guerra, e a marca da caveira
Quando os nazistas escolheram o símbolo da caveira para uma divisão das SS, e usaram o vocábulo correspondente (Totenkopf), estavam dizendo exatamente que vinham em nome da morte. Acreditavam que os alemães só se afirmariam se os outros perecessem. Não há símbolo mais perfeito para a exclusão. Por Mauro Santayana, na Coluna Coisas da Política, Jornal do Brasil, 24/03/2008 [Leiam, ainda, a nota do EcoDebate].
Oficiais da reserva das Forças Armadas, intelectuais, empresários e embaixadores, estão ensinando estratégia militar a executivos brasileiros (Gazeta Mercantil, 11 de março). Ao mesmo tempo, ex-integrantes do Bope ensinam estratégia e táticas de assalto a outros executivos de grandes empresas. Nesse caso, o símbolo da doutrina é a caveira das SS de Himmler. Os funcionários são condicionados, conforme a técnica de Pavlov, a agir de acordo com as ordens de açulamento, sob a promessa da ração extra, se as cumprirem bem, e a ameaça do desdém e expulsão do grupo, se fraquejarem. Não se trata do necessário e normal treinamento para o trabalho, mas adestramento para que se tornem “feras”. Os executivos são instigados à agressão, como os contingentes da Polícia Militar são convocados para escalar as favelas, com seus gritos de guerra e o caveirão.
Querem os patrões que ajam da mesma forma com que atuavam os esquadrões de execução de Himmler ao eliminar judeus, ciganos, comunistas, democratas – e rivais na competição interna pelo poder. É essa a Totenkultur – cultura da morte – que ressurge em nossos tempos neoliberais. Era essa a cultura entre as duas guerras mundiais do século passado, que o vienense Karl Krauss denunciou em cáusticos ensaios. Também se vivia, naqueles anos, uma grande época, até que o nazismo viesse a levá-la ao apogeu de Auschwitz.
Os atos de guerra se justificam na defesa da soberania dos Estados nacionais. Os exércitos surgiram e se desenvolveram a partir dessa imperiosa necessidade da segurança das comunidades políticas. Nos corpos militares, o condicionamento à obediência e as rígidas normas disciplinares são necessárias à eficiência bélica. Neles, o fundamento da violência é a defesa de toda a comunidade nacional. O inimigo é aquele que viola nossas fronteiras.
Os corpos policiais devem estar preparados para o exercício prudente da força, a serviço da ordem jurídica republicana. As organizações policiais, hoje pervertidas pela omissão de sucessivos governos, exercem mal o monopólio estatal da violência. Em razão disso, algumas vezes parecem atuar como forças estrangeiras de ocupação e repressão, e cultuar – com as caveiras, os gritos de guerra, e a proclamada sede de sangue – a ideologia do nazismo.
O condicionamento psicológico de trabalhadores – se assim entendemos todos os que vendem seu tempo produtivo – é a consciente determinação de adestrá-los como animais predatórios. Mais do que os eventuais concorrentes, eles são as grandes vítimas desse processo inumano. Um dos professores desses cursos, ex-capitão do Bope, resume a filosofia moral que os orienta: “Você é um “operação especial” ou um convencional em sua atividade? O convencional é um invertebrado, é quem desmonta no primeiro tiro ou na primeira meta”. Como todos os discursos do fascismo, a objurgatória deve ser entendida ao contrário. Invertebrado não é o “convencional” – o ser humano comum, igual aos outros seres humanos, com seus sentimentos e sua personalidade. Invertebrado é aquele cujas vértebras são amolgadas pelo discurso totalitário desses amestradores. O objetivo é exatamente o de “quebrar a espinha” ética dos executivos, a fim de que rendam mais lucros a seus empregadores custe o que custar à sua alma. É uma banalização do contrato de Fausto. Mefistófeles queria a alma do ambicioso em troca do poder, da fortuna e da glória. O capitalismo neoliberal quer o corpo e a alma, em troca do simples emprego.
É assim que ecoam os versos que saúdam a chegada de um ex-capitão do Bope ao recinto da seguradora do Unibanco associada à norte-americana AIG: “Tropa de elite, osso duro de roer, pega um, pega geral, também vai pegar você!”. No final da palestra, todos gritam “eu sou caveira!”. Alem da seguradora, são citadas, na excelente reportagem de Maeli Prado, divulgada ontem pela Folha de S.Paulo, a Perdigão, e a Rosset Têxtil (Valisère e Cia. Marítima). Da última empresa, dois “alunos” se demitiram, revoltados.
Surpreende a presença, entre os clientes, da seguradora controlada pelo patrimônio construído pelo senhor Walter Moreira Salles. Se ele fosse vivo, jamais admitiria essa violação da ética – que contraria a postura de seus filhos Walter e João Moreira Salles, dois criadores conhecidos pelo humanismo de seu trabalho intelectual.
Nota do EcoDebate
Mauro Santayana, em sua coluna, expressa de forma correta a indignação justificada diante desta absurda perda de noções mínimas de ética.
Empresas que violam a ética ou desqualificam os direitos humanos não são e jamais serão socialmente responsáveis, enquanto seus executivos e acionistas pensarem e agirem de forma neo-fascista.
Infelizmente o fenômeno não é novo. Há mais de uma década que diversas empresas incentivam a “formação e qualificação” de seus recursos humanos a partir de parâmetros completamente equivocados, tais como muitos cursos de liderança e gerência baseados em artifícios e manipulação.
Não deve ser difícil imaginar o que uma empresa assim pensa de seus clientes ou qual a sua ética concorrencial ou, ainda, qual a sua política interna de igualdade de oportunidade de gênero, de raça e de origem social.
Pena que nada acontecerá, simplesmente porque o consumidor/cidadão não reagirá e, bovinamente, continuará a consumir o que quer de seja, independente de quem produz.
Foi o que aconteceu com as empresas que maquiaram produtos, reduzindo seu peso e/ou quantidade, enganando o consumidor. A maioria continua líder em seus segmentos.
Em tese, as empresas existem para servir aos consumidores, mas a nossa prática indica exatamente o contrário. E nada indica que isto mudará.
Henrique Cortez, henriquecortez@ecodebate.com.br
coordenador do portal e do blog EcoDebate