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Presidente, primeiro os trabalhadores, depois a cana

O presidente Lula afirmou nessa semana: “Vira e mexe, nós estamos vendo eles falarem do trabalho escravo no Brasil, sem lembrar que o desenvolvimento deles, à base do carvão, o trabalho era muito mais penoso do que o trabalho na cana-de-açúcar”. A fala de Lula faz referência as freqüentes denúncias de trabalho degradante nas fazendas de cana-de-açúcar. O jornalista e coordenador da Agência Repórter Brasil, Leonardo Sakamoto, uma das pessoas que mais estuda e acompanha a realidade do trabalho escravo no Brasil, em artigo em seu blog, 05-03-2008, comenta a afirmação do presidente.

Eis o seu comentário.

A declaração foi dada pelo presidente Lula, ontem, durante uma visita a uma unidade da Embrapa. Ele se referia às primeiras etapas da revolução industrial européia, ocorridas no século 18, e na qual trabalhadores, adultos e crianças, eram tratados como animais.

O serviço naquela época podia até ser mais penoso que o atual, não discuto isso. Mas não é triste comparar a situação de hoje do país com a da Europa de 200 anos atrás para precisar se justificar frente às violações de direitos humanos que ocorrem no campo? Ou seja, aqui é ruim hoje, mas aí era pior há dois séculos. Dizer isso é passar um atestado de incompetência coletiva – que, de certa forma, merecemos por não garantir que nenhum cortador de cana seja tratado como bicho em nome do progresso.

Em 2007, 5.973 pessoas ganharam a liberdade graças à atuação da fiscalização do Ministério do Trabalho e Emprego, Ministério Público do Trabalho e Polícia Federal. Mais da metade do total dos escravos libertados estavam em atividades ligadas à produção de cana-de-açúcar, de acordo com levantamento feito pela Repórter Brasil em janeiro. O ano passado foi o ano do trabalho escravo na cana.

Isso sem contar os casos de superexploração, como os mais de 20 trabalhadores que morreram de exaustão após cortar diariamente toneladas de cana no interior do Estado de São Paulo, meca do agronegócio nacional, nos últimos três anos.

O que não é supreendente. O etanol brasileito se tornou vedete internacional, os usineiros “heróis” nas palavras do presidente da República (heróis deveriam ser chamados os trabalhadores rurais, que são os responsáveis por esse “milagre verde” do etanol, e os auditores, procuradores e policiais que os libertam). Com isso, o interesse pela ampliação da produção e a busca por novas áreas cresceu. E com isso, a exploração do trabalhador.

A declaração de ontem e sobre os heróis usineiros não foram as únicas declarações infelizes do presidente sobre o tema. No ano passado, ele disse que não havia trabalho escravo na cana ou cana na região amazônica. Poucos dias depois, o grupo móvel de fiscalização faz uma libertação de 1.064 pessoas na fazenda e usina Pagrisa, em Ulianópolis, Pará.

Há muita gente lá fora querendo o fracasso comercial do Brasil e usando a justificativa social para erguer barreiras? É claro! No comércio internacional, não há ninguém bonzinho. Mas o Brasil, que é um dos únicos que reconhece o problema e faz a lição de casa pode mostrar o que está fazendo e cobrar o mesmo dos outros. Por exemplo, uma estimativa aponta para 17 mil trabalhadores escravos nos Estados Unidos (o “chute” mais usado para o Brasil é de 25 mil). Lá, imigrantes mexicanos podem ser encontrados em trabalho forçado em grandes fazendas em uma meia lua que começa na Flórida e vai até o Noroeste americano. Não há um sistema como o brasileiro para resolver o problema.

O mesmo vale para trabalhadores turcos na cadeia do aço alemão, os trabalhadores domésticos da periferia de Paris, os indianos e paquistaneses em Londres… O que mostra falhas na assessoria internacional de nosso presidente.

O governo brasileiro criou em 1995 um sistema de combate à escravidão que é considerado referência mundial pela Organização Internacional do Trabalho. Desde então, mais de 28 mil pessoas foram libertadas. Indenizações milionárias são sentenciadas na Justiça, restrições comerciais e financeiras impostas. O atual governo elevou e muito a qualidade do combate ao trabalho escravo. Por isso mesmo surpreende o presidente não utilizar os bons resultados obtidos por gente do seu próprio governo em seus discursos mas, pelo contrário, rebater as críticas de forma tão superficial. E reclamar daqueles que mostram a verdade com medo de que vá haver “repercussão lá fora”.

Muitas vezes esse é o único expediente que funciona. Por exemplo, quando uma empresa no Brasil se nega a adotar o trabalho decente como norte ou a cortar relações comerciais com quem usa escravos, uma das saídas é apelar para o exterior. Isso funcionou com multinacionais que atuam no Brasil, por exemplo, como a Cargill. Pode não ter melhorado nossa balança comercial, mas já indícios de que está melhorando a vida de pessoas. Que é o que importa, no final das contas.

Se o Brasil quer ser referência internacional do comércio poderia começar garantindo que seus produtos são socialmente e ambientalmente responsáveis – um diferencial neste mundo de cadeias produtivas problemáticas.

Os relatórios de fiscalização do Ministério do Trabalho e Emprego mostram que os empregadores envolvidos nesse tipo de exploração não são pequenos sitiantes isolados economicamente do restante da sociedade, mas na maioria das vezes, grandes proprietários rurais, muitos deles produzindo com tecnologia de ponta. Pesquisas da ONG Repórter Brasil apontam que esses produtores fornecem commodities para grandes indústrias e ao comércio nacional e internacional. Portanto, estão sob a influência direta da economia de mercado e dela dependentes.

Ao contrário do senso comum, a utilização de trabalho escravo contemporâneo no Brasil não é resquício de modos de produção pré-capitalistas que sobreviveram provisoriamente ao capitalismo, mas sim um instrumento utilizado pelo modo de produção para facilitar a acumulação em seu processo de expansão ou modernização. Esse mecanismo garante competitividade a produtores rurais de regiões e situações de expansão agrícola que optam por uma via ilegal. Traduzindo: quando alguém não quer ou não pode investir dinheiro para introduzir ou modernizar sua produção, arranca o couro do trabalhador para economizar e ajudar a manter a margem de lucro igual aos dos concorrentes e seguir em frente.

O combate ao trabalho escravo, para ser efetivo, passa por um conjunto de ações nacionais e multilaterais como a repressão aos ganhos econômicos gerados pela exploração dessa forma de mão-de-obra não só no Brasil, mas em todos os países. E vale lembrar que eventuais restrições às importações não devem ser feitas de maneira generalizada e sim analisando-se caso a caso para não cometer injustiças com os países da periferia. O Brasil já possui mecanismos para que os compradores de commodities não adquiram mercadorias produzidas com trabalho escravo, como a consulta à “lista suja”, cadastro do governo federal que divulga os empregadores que utilizaram essa prática. Instituições financeiras têm negado crédito a essas pessoas e empresas signatárias do Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo têm cortado relações comerciais com eles. Inclusive, é importante que se diga, empresas distribuidoras de álcool combustível, como Petrobras, Ipiranga e Esso, têm tido um comportamento muito importante nessa área.

É claro que há um limite para o alcance disso. Pois o trabalho escravo não é uma doença e sim uma febre, um indicador de que o corpo está doente. Tratar a febre (como libertar trabalhadores) é muito importante pois alivia a dor, mas não resolve em definitivo. O Brasil ainda falha ao tentar implementar medidas para atacar a impunidade (como a proposta de mudança na Consituição que prevê o confisco de terras onde escravos forem encontrados e que está desde 1995 esperando aprovação) e reduzir a pobreza, que junto com a ganância são o tripé que sustenta a escravidão contemporânea no Brasil.

(www.ecodebate.com.br) comentário publicado pelo IHU On-line, 06/03/2008 [IHU On-line é publicado pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, em São Leopoldo, RS.]