O nascimento da indústria das secas no Brasil, artigo de João Abner Guimarães Jr.
[EcoDebate] Nesses dias – em que a Transposição do Rio São Francisco é apresentada como uma política de Governo que remonta à época do Império do Brasil voltada para solucionar a problemática da seca no Brasil – é apropriado resgatar-se o grande humanista Euclides da Cunha que há 100 anos no seu extraordinário livro “Os Sertões”, na parte inicial que trata da Terra, discutiu com profundidade a problemática do semi-árido brasileiro, segundo aspectos do relevo, do solo, da fauna e flora e do clima da região nordestina. Inclusive, ele fez uma abordagem propositiva com relação à seca desenvolvendo o tema “como se extingue um deserto”.
Euclides reportou a experiência do Norte da África, na Tunísia, lembrou o que os romanos fizeram depois que venceram Cartago, atual Tunísia – construíram uma nova civilização com base na água numa região semidesértica.
“Quem atravessa as planícies elevadas da Tunísia, entre Beja e Biserta, à ourela do Saara, encontra ainda, no desembocar dos vales, atravessando normalmente o curso caprichoso e em torcicolos dos oueds, restos de antigas construções romanas. Velhos muradais derruídos, embrechados de silhares e blocos rolados, cobertos em parte pelos detritos de enxurros de vinte séculos, aqueles legados dos grandes colonizadores delatam a um tempo a sua atividade inteligente e o desleixo bárbaro dos árabes que os substituíram. Os romanos depois da tarefa da destruição de Cartago tinham posto ombros à empresa incomparavelmente mais séria de vencer a natureza antagonista. E ali deixaram belíssimo traço de sua expansão histórica. “
Transformaram-na num grande celeiro de produção de alimentos para Roma – por mais de 700 anos Cartago produziu alimentos para Roma, com base num sistema integrado de armazenamento de água em açudes, pequenos e médios, com a distribuição através de canais laterais para áreas de irrigação. Essa experiência que Euclides da Cunha deve ter conhecido, porque foi retomada pelos franceses no século XIX, apresentou como um exemplo que poderia ter sido reproduzida no semi-árido brasileiro, ao contrário do projeto com mania de grandeza que começava, naquela época, a ser desenvolvido no Brasil, cujo exemplo mais marcante é o açude do Cedro, em Quixadá no Ceará, citado por Euclides como “único, monumental e Inútil”.
O Cedro foi mal projetado, começou a ser construído na época do império e terminou no início do século XX, durante esse último século sangrou poucas vezes e apresentou baixíssima eficiência de utilização das suas águas.
Esse senso crítico aflora, quando Euclides da Cunha reportou um momento que aconteceu em 1877 no Rio de Janeiro, em época de uma grande seca na Região Nordeste. O Governo Imperial promoveu na Escola Politécnica do Rio de Janeiro um evento para discutir essa questão e trouxe um consultor francês para falar sobre a experiência da França na Tunísia.
Segundo ele, das discussões então travadas onde se envolveram os melhores cientistas daquela época “- da sólida experiência de Capanema à mentalidade rara de André Rebouças – foi a única coisa prática, factível, verdadeiramente útil que ficou.“
“Idearam-se, naquela ocasião, luxuosas cisternas de alvenarias, miríades de poços artesianos perfurando nas chapadas, depósitos colossais, armazéns desmedidos para as reservas acumuladas, açudes vastos, feitos cáspios artificiais e, por fim, como para caracterizar bem o desbarate completo da engenharia ante a enormidade dos problemas, estupendos alambiques para a destilação das águas do Atlântico!…”
Entretanto, segundo Euclides, antevendo o nascimento da indústria das secas no Brasil, a experiência da Tunísia, que é uma obra bem mais prática e mais modesta, poderia muito bem ter sido adotada no Nordeste brasileiro. Infelizmente, não foi o que ocorreu nesses últimos 100 anos, prevalecendo uma política hidráulica da obra como um fim em si mesma, descolada de um projeto de desenvolvimento regional, que resultou no maior programa de açudagem do mundo e uma extraordinária infra-estrutura ociosa de projetos hídricos inconclusos e em grande parte inviáveis, em todos os estados da Região.
A propósito, em nenhum momento no seu livro “Os Sertões” Euclides da Cunha citou a obra de transposição do rio São Francisco, apesar de atualmente ser a mesma decantada pelo Governo como uma obra em evidência desde a época do Império.
João Abner Guimarães Jr., Engenheiro Civil – Professor da UFRN, colaborador e articulista do EcoDebate