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Pecuária e desmatamento da Amazônia, artigo de André Meloni Nassar

[O Estado de S.Paulo] Os dados com as estimativas da área desmatada no bioma amazônico divulgados pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), referentes aos meses de agosto a dezembro do ano passado, colocaram a pecuária na berlinda. O setor foi alçado à posição de grande responsável pela retomada do crescimento do desmatamento, que, como confirmaria qualquer brasileiro, é um problema que não podemos mais deixar de enfrentar. Nesse caso, a pecuária tornou-se a vilã.

No entanto, quando se analisa o comportamento da área de pasto nas regiões que não são fronteira agrícola, ou seja, fora do bioma amazônico, o título não cabe. Os dados preliminares do Censo Agropecuário do IBGE, divulgados no final do ano passado, comprovam que a pecuária liberou enormes contingentes de terra que foram convertidos para produção agrícola. Contribuiu, portanto, para evitar novos desmatamentos, levando a um aumento da produtividade da terra. Nesse caso, cabe à pecuária o título de mocinha.

O Censo do IBGE, tal qual o levantamento do Inpe (embora os dados não sejam exatamente comparáveis), também mostra que a pecuária se expande na fronteira agrícola. Quando se faz um balanço entre o crescimento da área utilizada com pastagens na fronteira agrícola e nas regiões de não fronteira, observa-se que a pecuária liberou muito mais área (velha) do que abriu (nova). Em outras palavras, a conversão de terras de pasto pouco produtivo em produção de grãos, ou mesmo em pastos manejados, reduz o impulso de desmatar. Dessa perspectiva, no longo prazo, o lado mocinho da pecuária é mais forte que o lado vilão.

Assumindo que os dados do Censo não passarão por uma revisão significativa, em dez anos, entre os Censos de 1996 e 2006, na região de não fronteira agrícola – aqui definida como o território onde predominam os biomas da mata atlântica e dos cerrados (Estados das Regiões Sul e Sudeste, da Bahia, de Mato Grosso do Sul, de Goiás, do Tocantins e apenas a área de Mato Grosso que está fora do bioma amazônico) -, a área de pasto foi reduzida em 18,6 milhões de hectares (ou 186 mil km²). A área utilizada com lavouras anuais e permanentes, não por acaso, cresceu cerca de 17,6 milhões de hectares, mostrando que o crescimento da agricultura se deu em área de pecuária. Somando o espaço utilizado com pasto e lavouras, o Censo indica que houve queda de 1 milhão de hectares entre 1996 e 2006.

Já no bioma amazônico, aqui considerada a região de fronteira agrícola, que engloba uma boa parte de Mato Grosso e todos os Estados da Região Norte, com exceção do Tocantins, a área utilizada com pastagens aumentou 11,1 milhões de hectares. A expansão da área com lavouras foi de 7,6 milhões de hectares, resultando numa expansão total de 18,7 milhões de hectares. Esses números mostram que, embora a pecuária tenha, comprovadamente, avançado na fronteira agrícola, sua contribuição, liberando terra para produção agrícola, foi consideravelmente mais importante nas áreas de não fronteira.

Esta constatação enseja diversas implicações, sobretudo porque a pecuária é o setor que mais ocupa terra no Brasil. De acordo com os dados do Censo, há 172,3 milhões de hectares utilizados com pasto e 76,7 milhões utilizados com lavouras. A mais importante está em que, do ponto de vista do uso racional da terra e da redução da necessidade de incorporação de novas terras, a conversão de pasto em lavoura leva a um aumento da produção agrícola sem queda na produção da bovinocultura. Os 18 milhões de hectares na área de não fronteira representaram uma redução de 14% na área de pasto em relação a 1996. O rebanho bovino, por sua vez, caiu apenas 1,4% no mesmo período (o Censo de 2006 indica uma diminuição no rebanho de 1,6 milhão de cabeças). Isso significa que a pecuária apresentou, no mínimo, um ganho de 1,4% ao ano de produtividade. Ganho mínimo, porque sabemos que ainda existem relevantes contingentes de pasto degradado nesta região. Estimativas mostram que 20% dos pastos dos Estados de São Paulo, Paraná, Minas Gerais, Mato Grosso do Sul e Goiás podem estar degradados, ou seja, não são mais utilizados como fonte de alimento para o gado bovino. Retirando cerca de 25 milhões de hectares de pastos degradados da área total de pastagem nesses Estados, o ganho de produtividade da pecuária passa a ser de 4,5% ao ano, certamente bem maior do que a maioria das lavouras.

Ganhos de produtividade, no entanto, não são prerrogativas das áreas de não fronteira. O Censo mostra que a pecuária da Amazônia também se tornou mais produtiva nos últimos dez anos, tendo apresentado taxa de crescimento da produtividade maior do que a observada nos Estados do Centro-Sul. Isso comprova que, nessa região, a pecuária é uma atividade viável e rentável. Portanto é uma forte concorrente na competição pelo uso da terra.

O desmatamento – e, mais grave, o aumento do ritmo do desmatamento – tem de ser combatido por todos os meios possíveis e eficazes, incluindo a ação fiscalizatória e repressora do Estado. Mas a melhor forma de fazê-lo é criar, na Amazônia, mecanismos já bem-sucedidos nas áreas de cerrado e mata atlântica: estimular ganhos ainda maiores de produtividade na pecuária e utilizar as terras já desmatadas para produção agrícola. Não descartaria também a criação de incentivos para estimular produtores a regularizar suas fazendas, mesmo que isto leve, num primeiro momento, a uma flexibilização das exigências de reserva legal.

No entanto, para que tudo isso seja possível, temos dois desafios fundamentais. O primeiro é reconhecer que a região amazônica precisa gerar riqueza e renda para sua população e a pecuária é parte da solução para vencer este desafio. O segundo é criar valor para a floresta em pé, balanceando a competição por terra entre agricultura e conservação.

André Meloni Nassar é diretor-geral do Instituto de Estudos do Comércio e Negociações Internacionais (Icone).
E-mail: amnassar@iconebrasil.org.br

Artigo originalmente publicado pelo O Estado de S.Paulo, 20/02/2008