Um dia chegaremos ao desmatamento zero, artigo de Danilo Pretti Di Giorgi
[Correio da Cidadania] O Ministério do Meio Ambiente, com o apoio de parte da grande imprensa, vinha capitalizando a redução do desmatamento amazônico desde o segundo ano do governo Lula. Dos mais de 20 mil km² dizimados por ano entre 2003 e 2004, chegamos a pouco mais de 11 mil km² entre meados de 2006 e 2007. Segundo a versão que a ministra Marina Silva vinha divulgando pelo mundo, aproveitando-se de sua imagem de “representante dos povos da floresta”, a queda era resultado da “ação enérgica” do governo e da fiscalização mais eficaz. Mas sabíamos desde então que a redução se dera principalmente como resultado da queda nos preços de alguns produtos do agronegócio naquele período, o que reduziu o incentivo a novos desmatamentos.
Tudo ia muito bem com esta versão até agora, quando, no final de janeiro, dados mais recentes divulgados pelo Inpe apontaram um crescimento expressivo nos desmatamentos, justamente quando o agronegócio vive um momento de recuperação.
Como não podia deixar de ser, houve confusão e corre-corre no governo, acompanhados por uma enxurrada de bobagens e declarações infelizes. A grande imprensa deliciou-se com as bobagens ditas por todos os lados, com destaque para o presidente Lula, Marina Silva e para o governador do Mato Grosso, que geraram manchetes vendedoras de jornais e revistas por algumas semanas. Esse é o resumo da história.
Mas alto lá.
Tente imaginar o que significa o desmatamento de área equivalente a quatro mil campos oficiais de futebol por dia. Foi este grau de desmatamento que o governo e a imprensa comemoraram entre 2004 e 2006. Procure visualizar a imensa quantidade de árvores destruídas a cada 24 horas. E não são apenas árvores centenárias, gigantescas, que chegam a 50 metros de altura. Além destas, outras árvores menores, arbustos, ervas, bromélias, orquídeas, trepadeiras, também foram destruídas. Incontáveis tipos de vegetais, que servem de alimento e abrigo para animais dos mais variados tipos, de minúsculos insetos até a enorme anta. Tudo destruído, convertido em fumaça que contribui para o efeito estufa. Aniquilados, por vezes, pela ação de motosserras e espingardas e, outras, com o simples uso do fogo, que tem o poder de devastar áreas imensas. Pensem nos ninhos queimados, nos animais menos velozes imolados pelo fogo todos os dias e em outros tantos, expulsos pela destruição.
Há o que se comemorar com este número? Se a sua resposta for não, você está indo contra a opinião dos políticos, da imprensa e até mesmo de alguns ambientalistas que dão respaldo à ação do Ministério do Meio Ambiente. Percebam que a crise atual não foi causada pelo desmatamento em si. Sua origem está especificamente no aumento da destruição de quatro para o equivalente a seis mil campos de futebol por dia. Se os dados indicassem a manutenção dos quatro ou até a redução para três mil campos de futebol por dia estaria tudo bem.
Não quero aprofundar-me nos patéticos papéis desempenhados pelos atores envolvidos no episódio, até porque os veículos de comunicação já se encarregaram de ajudar a desviar a discussão do seu verdadeiro foco e de escancarar o pobre jogo político disputado entre políticos, ruralistas e alguns representantes de ONGs ambientalistas.
Com a teatralização das declarações de lado a lado – estilo novela ou Big Brother -, a grande imprensa faz o tal do jornalismo declarativo, pobre e fácil de produzir, o estilo revista de fofoca de noticiar. Assim, fica-se dando mais destaque às briguinhas dos políticos (que se pegaram publicamente em diversas oportunidades) e ambientalistas do que ao problema da devastação em si. Ninguém questiona as grandes obras de infra-estrutura planejadas para a região amazônica ou o nosso modelo de crescimento ancorado no agronegócio exportador. Não se discute a fundo a loucura representada pela perda de milhares de quilômetros quadrados de mata por ano. Ninguém busca as verdadeiras razões nem se debate seriamente sobre como lutar contra isso. Seria o papel de uma mídia decente e atuante, em sua obrigação e função primordial de ajudar a melhorar a sociedade, não escarafunchar joguinhos políticos de baixo nível.
Também prefiro não focar a análise em Lula ou Maggi por outra razão: quando apontamos suas falhas na condução da questão reforçamos a idéia errônea e perigosa de que eles seriam “os grandes culpados” pelos problemas. Os políticos têm culpa, sim. Mas não vai ser somente apontando culpados individualmente que vamos sair da maior crise da história da humanidade.
Mais que grandes culpados, os políticos são canais de materialização de forças dominantes presentes na sociedade como um todo. Lulas e Marinas não são super-heróis capazes de mudar com papel e caneta os rumos da humanidade. Nem Blairo Maggi é supervilão. Os vilões somos todos nós, e a solução depende de uma tarefa conjunta que vai muito além de votar neste ou naquele candidato. Em uma analogia, os desmatadores seriam a mão que comete o crime, os governantes os músculos que podem deter ou acelerar as ações desta mão e a sociedade, como um todo, o cérebro que comanda tudo, mas que quase nunca tem consciência das conseqüências das ordens que dá ao restante do corpo.
Os personagens representados por Maggi, o político poderoso, sojicultor milionário e falastrão, e Lula, o presidente que traiu as causas ecológicas quando chegou ao poder, acabam facilmente escolhidos para explicar tudo e expiar todas as nossas culpas. É, da mesma forma, confortável dizer que Kyoto não evoluiu por causa do Bush, quando sabemos que a verdade não é essa. Acredito que as emissões globais de carbono, especialmente aquelas dos países ricos, não teriam caído significativamente com a assinatura de Bush. Eu não acho que estaríamos reduzindo a produção de bens de consumo nem reduzindo a demanda por energia, a única forma de enfrentar a questão, se os EUA tivessem aderido ao protocolo nos anos 90.
O que fica disso tudo é que as florestas da Amazônia vão desaparecer quase que em sua totalidade. Ao fim deste século restarão os parques e reservas, e talvez muitos deles nem sobrevivam, a julgar pelas pesquisas que apontam as graves conseqüências climáticas do desmatamento, como a redução no regime de chuvas em boa parte da bacia amazônica (sobretudo no sul e leste).
É lugar comum a afirmação (e, mais ainda, o pensamento não expressado publicamente) de que desmatamento zero é utopia. Aceitar essa idéia equivale a afirmar com todas as letras que as florestas tropicais vão ficar completamente desfiguradas ou desaparecer completamente nas próximas décadas. Até porque o desmatamento zero vai chegar mais dia ou menos dia. Nem que seja quando não existirem mais árvores para se derrubar.
Danilo Pretti Di Giorgi é jornalista. E-mail: digiorgi@gmail.com
Artigo enviado pelo Autor e originalmente publicado pelo Correio da Cidadania, 15/02/2008