O poder da informação, artigo de Cláudio Weber Abramo
[Correio Braziliense] O caso dos cartões corporativos usados por integrantes do governo federal mostra várias coisas, várias delas suficientemente cobertas pela imprensa, de modo que não vale a pena chover no molhado. O que não chove no molhado é a demonstração, mais uma vez, do poder da informação — e de como, no Brasil, ela é pouco usada.
Os dados a respeito dos gastos de detentores de cartões estão publicados há pelo menos dois anos no Portal da Transparência, mantido pela Controladoria-Geral da União, CGU (www.portaltransparencia.gov.br). Antes, a ONG Contas Abertas (contasabertas.uol.com.br) publicava as mesmas informações, extraídas do Siafi, o sistema de contas do governo.
É de perguntar por que demorou tanto para que os padrões de despesas com os cartões fossem examinados e as esquisitices levantadas. A resposta deve ser buscada no costume, muito disseminado no Brasil, de tender a prestar atenção num assunto apenas quando alguém faz alguma declaração — ou revelação, como tantas vezes se lê. Desse mal padece, em primeiro lugar, a imprensa e, em seqüência imediata, a grande maioria das organizações não-governamentais (ONGs).
Não importa que os dados estejam publicados na internet. Se ninguém fizer uma “revelação” sobre esses mesmíssimos dados, a chance de algum jornal se dar conta do assunto é em geral mínima. Mesmo quando instados explicitamente a dar uma olhada num determinado conjunto de informações, a reação normal do jornalista brasileiro é de indolência. Se a matéria não vier pronta, com tudo mastigado e as porcentagens pré-calculadas, não é na redação que isso se fará.
Por exemplo, muitas vezes, ao longo dos últimos dois ou três anos, este que escreve procurou interessar repórteres diversos pela curiosa freqüência de saques em dinheiro realizados com os cartões corporativos governamentais. Os dados estavam lá, seria só questão de compilá-los. Não aconteceu.
Da mesma forma que os dados sobre cartões de crédito estão na internet, há milhares de outras famílias de informações disponíveis na rede e que resultariam em pautas saborosas todos os dias, mas permanecem longe da vista do público por desleixo dos que têm a responsabilidade de informar.
Da mesma forma que a disseminação da informação sobre os cartões de crédito levou ao anúncio de mudanças no uso (cujo teor e alcance ainda será anunciado pela CGU), a discussão pública resultante da veiculação de análises e agregações sobre outros repositórios de dados pode levar ao aperfeiçoamento de inúmeras atividades do Estado. Reciprocamente, se a informação de domínio público não é usada para isso, isso equivale a renunciar ao poder de questionar os órgãos do Estado.
Exemplo são as informações sobre o desempenho parlamentar dos indivíduos eleitos, em particular no plano estadual — em Brasília, distrital. São pouquíssimas as casas legislativas que publicam informações sobre esse desempenho. Por exemplo, como os deputados gastam as verbas de gabinete (grotescamente denominadas indenizatórias), ou se comparecem ou não ao trabalho no plenário e nas comissões temáticas.
O Senado Federal, por exemplo, não publica coisa alguma, em escandaloso contraste com a Câmara dos Deputados. A Câmara Legislativa do Distrito Federal está entre as poucas que publicam os gastos de gabinete (mas não a assiduidade dos deputados).
A Transparência Brasil recolhe sistematicamente esses dados e os publica em seu projeto Excelências (www.excelencias.org.br). Há um par de semanas, a entidade divulgou relatório de 40 páginas com análises realizadas sobre a massa de informações. O Correio Braziliense publicou um bom resumo sobre a Câmara Legislativa.
A exibição dos dados leva a perguntas naturais, por exemplo: como é possível que cada um dos deputados distritais tenha o direito de consumir R$ 6.100 por mês com combustíveis? Quase todos usam esse dinheiro, ou melhor, são indenizados.
Convida-se o eventual leitor a comparar esse nível de consumo com o da própria família. É realmente possível que um indivíduo qualquer consiga gastar R$ 6.100 por mês com gasolina ou álcool combustível? Isso só seria concebível se cada um dos deputados se mantivesse em deslocamento durante todas as 24 horas de todos os dias úteis do ano. Trata-se de hipótese perfeitamente implausível — o que de imediato levanta a pergunta: para onde vai de fato o dinheiro?
Outras curiosidades de mesmo tipo são encontráveis nas numerosas bases de dados mantidas por diferentes órgãos públicos. Caso fossem examinadas com alguma assiduidade, quem sabe quantas mazelas seriam “reveladas”?
Artigo originalmente publicado pelo Correio Braziliense, 07/2/2008