Duzentos anos de atraso no Brasil, artigo de Marcos Sá Corrêa
[O Estado de S.Paulo] Dos bicentenários que se penduram em cachos na folhinha de 2008, o único que poderia ensinar alguma coisa à atual administração pública brasileira tem tudo para passar em brancas nuvens. Fará 200 anos, daqui a pouco, a chegada ao Rio de um governo que fingiu acabar com a imprudência ambiental nas encostas da cidade.
Isso não quer dizer que, sem a presença física de D. João na colônia, faltasse às autoridades legislação para barrar a grande queima geral da floresta, que abriu naquela época a estrondosa liquidação da mata atlântica.
Mas as Ordenações do Reino, como outras mercadorias expedidas da metrópole, atravessam mal o Atlântico. E, em 1808, com os morros cariocas bem à vista do príncipe regente, o funcionamento das leis teria os melhores motivos para ser diferente.
A transferência da corte pegou em cheio o processo de desmatamento deflagrado pelo café a partir de 1780, o principal produto da aliança que juntou na época “fazendeiros brasileiros, nobres portugueses, franceses exilados pela revolução, pelas guerras napoleônicas, militares ingleses e diplomatas estrangeiros”, conta José Augusto Drummond em Devastação e Preservação Ambiental no Rio de Janeiro.
Esse, diga-se de passagem, é mais um livro fundamental que não pegou, aparentemente por falta de opinião pública interessada em discutir o que Drummond escreveu.
Tratava-se, originalmente, de uma tese de mestrado em ciências sociais no Evergreen State College, de Olympia, extremo norte dos Estados Unidos, onde o autor se desintoxicou de nossa monocultura acadêmica, expondo-se durante dois anos “às férteis influências de botânicos, zoólogos, ecólogos, geógrafos, geólogos, engenheiros florestais, agrônomos e outros professores ou colegas formados em ciências naturais”.
A edição em português saiu às vésperas da Rio-92. Há muito tempo sumiu das livrarias. Cada vez mais, anda fazendo falta.
MITO DO INESGOTÁVEL
Os pioneiros dos cafezais cariocas eram, segundo Drummond, “empreendedores e otimistas”, no sentido mais brasileiro dessas duas virtudes cívicas. Eles acreditavam que “a paisagem fluminense era abençoada por uma abundância infinita” e que “as terras florestadas não se esgotariam jamais”.
Fizeram fortunas garimpando essa ilusão, até esgotá-la. Em menos de 70 anos, falidos como cafeicultores, estavam produzindo falta d’água numa Baía de Guanabara que chamara a atenção dos primeiros europeus em 1502 pela fartura e pela qualidade de suas fontes.
O Rio enfrentou duras secas em 1824, 1829, 1833 e 1844. Mas só a partir de 1872 cortaria o problema pela raiz, reflorestando parcialmente a Serra da Tijuca, quando a cidade já estava estrangulada pela explosão demográfica. O Rio tinha então 275 mil habitantes. Três vezes mais do que às vésperas da Independência.
Enquanto morou em São Cristóvão, D. João limitou-se à mímica das providências oficiais contra a sede dos cariocas. Proibiu o corte de árvores em mananciais e beiras de riachos. Mandou avaliar terras particulares para transformá-las em unidades de conservação. Criou, pelo menos no papel, reservas florestais.
PROTETOR INCAPAZ
Tudo, sem tirar nem pôr, como o governo faz agora na Amazônia, achando que as coisas acontecem pela primeira vez na história do Brasil. Ledo engano. “Se o Estado brasileiro vem fracassando como gestor de políticas sociais prioritárias em educação, saúde, transporte e segurança, não é de surpreender que seu desempenho como protetor de terras públicas com valor ecológico seja ainda pior”, conclui Drummond, resumindo 200 anos de tradição.
Marcos Sá Corrêa é jornalista e editor do site O Eco
Artigo originalmente publicado pelo O Estado de S.Paulo, 06/02/2008