O minério é nosso?
A Vale tenta a maior compra de sua história, mas a União teme que os interesses de mercado prevaleçam sobre os do País. Roger Agnelli, da Vale, tem insistido, mas o presidente resiste em dar a benção à operação. Por André Siqueira , publicado pela Carta Capital, Edição 481
A maior aquisição da história do mundo empresarial brasileiro depende do aval do presidente Lula para ser, ou não, concretizada nos próximos dias. A companhia Vale, segunda maior empresa de mineração do planeta, pretende pagar mais de 80 bilhões de dólares pelo controle da sexta do ranking, a anglo-suíça Xstrata. A operação, segundo a imprensa internacional, conta com o apoio dos financiadores, um pool de 12 grandes bancos que emprestaria 50 bilhões de dólares à empresa. O restante do valor seria coberto pela emissão de novas ações, a ser entregues aos donos da concorrente. O governo se vê diante de um impasse: como manter as rédeas sobre uma empresa com tal porte e importância estratégica para a indústria mundial?
Em teoria, a dúvida não deveria existir. Durante o processo de privatização, há dez anos, foi criada a golden share, cláusula que dá ao governo o poder de veto em negócios que envolvam alterações significativas na estrutura de capital da empresa. Além disso, o BNDES e a Previ, fundo de pensão dos funcionários do Banco do Brasil, detêm a maioria das ações controladoras da Vale, ao lado do Bradesco e do banco japonês Mitsui.
Na prática, sabe-se que é cada vez mais difícil conter o ímpeto expansionista da Vale e represar os investimentos da empresa dentro do Brasil. Tal preocupação foi tornada pública pelo presidente Lula. E não sem fundamento. A mineradora é dona da maior malha ferroviária do País, com quase 10 mil quilômetros, e maior investidora do setor. É dona de seis usinas hidrelétricas e responsável por projetos como Estreito, de 1.422 megawatts, e uma térmica no Pará de 600 megawatts. Na área siderúrgica, é o braço capitalista brasileiro em parcerias internacionais para a construção de grandes usinas no Ceará, no Espírito Santo e no Rio de Janeiro.
O presidente da Vale, Roger Agnelli, tem conversado diretamente com Lula nas últimas semanas, em busca de aprovação à compra da Xstrata, mas ainda não recebeu uma resposta definitiva. Analistas de mercado consideram a bênção do governo o último grande obstáculo à compra, por se tratar de um negócio do interesse de ambas as empresas. CartaCapital apurou que, no momento, a tendência é o Planalto vetar a operação.
Ao lado do interesse nacional sobre os rumos da Vale, é preciso observar a movimentação do mercado internacional de exploração mineral, um setor altamente concentrado nas mãos de poucos grupos. A australiana BHP Billiton, maior mineradora do mundo, tenta avançar nas negociações para a compra da terceira colocada, a Rio Tinto. Se bem-sucedido, o arremate criará um gigante no setor, capaz de dar as cartas no mercado caso não tenha concorrentes à altura.
“A dúvida do governo é quase shakespeariana”, avalia o professor da Fundação Getulio Vargas (FGV-SP) Evaldo Alves, especialista em economia internacional e ex-presidente da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep). “Se não deixar a Vale participar do jogo da globalização e demarcar seus territórios, corre o risco de vê-la perder mercado para as concorrentes ou até receber futuras ofertas de compra. Mas à medida que a companhia cresce, o peso do interesse nacional sobre as decisões da empresa fica diluído.”
O professor lembra ainda que o xadrez da mineração mundial é também uma disputa entre nações emergentes. “Os países desenvolvidos concentram esforços em setores de alto valor agregado, como a nanotecnologia, a química fina e as pesquisas de novos materiais. Mas, se o governo segura o crescimento da Vale hoje, corre o risco de indianos, russos ou chineses entrarem no mercado e se tornarem uma ameaça no futuro”, diz Alves.
As justificativas para a preocupação do governo não param por aí. O especialista em direito societário e professor da USP Modesto Carvalhosa, do escritório Carvalhosa e Eizirik, lembra que, embora a intenção seja utilizar ações preferenciais, sem direito a voto, na aquisição da Xstrata, a Lei das S.As. prevê situações em que esses papéis dão poder sobre a companhia. “Basta que deixem de ser distribuídos dividendos por três anos, um prazo que pode ser reduzido por um projeto de lei que tramita no Senado”, explica. O temor tem base legal, mas não factual, de acordo com o advogado, pois o mecanismo não foi utilizado no País até hoje.
Carvalhosa ressalta ainda a possibilidade, mais concreta, de a companhia transferir o centro decisório e os executivos para fora do País e jogar exclusivamente as regras do mercado, mesmo que a sede formal permaneça no Rio. “Admitida essa hipótese, poderíamos ver a empresa concentrar as exportações nas minas da Oceania, por questões logísticas, e reduzir o ritmo de produção e os investimentos no Brasil”, exemplifica.
A Vale tem minas espalhadas por todos os continentes e é hoje a maior produtora mundial de minério de ferro e um player importante em carvão, alumínio, potássio, cobre, manganês e ferro ligas. Após a compra da canadense Inco, tornou-se também uma das líderes em níquel. Essa última aquisição, fechada em outubro de 2006 por 17 bilhões de dólares, é até agora a maior transação feita pela brasileira, apontada como responsável por um salto no valor de mercado da empresa. Até a quarta-feira 30, a companhia estava avaliada em 134,6 bilhões de dólares, de acordo com a consultoria Economática. O cálculo leva em conta a cotação das ações.
Com a compra da Xstrata, a Vale se tornaria dona de mais de 25% do mercado mundial de níquel e quarta maior produtora de cobre, além de aumentar a presença na área de carvão mineral. Um relatório do Citibank aponta ganhos de até 3 bilhões de dólares a serem alcançados, caso as duas empresas operem em conjunto. O Morgan Stanley prevê em 83 bilhões de dólares o valor a ser pago pela brasileira, com um ágio de 30% sobre o valor de face das ações da concorrente.
Para os investidores do mercado de capitais, o impacto da aquisição da Xstrata também seria significativo. A Vale foi a empresa estrangeira mais negociada na Bolsa de Nova York em 2007, com uma movimentação média diária na ordem de 725 milhões de dólares por dia. Entre a segunda-feira 21, quando assumiu publicamente a negociação com a Xstrata, e a quarta-feira 30, os papéis preferenciais da Vale na Bovespa caíram 3,54%, enquanto o índice Ibovespa registrou alta de 4,84%.
“A crise internacional também teve impacto sobre a cotação, mas a aquisição pode prejudicar a rentabilidade e a distribuição de dividendos a curto prazo. Isso explica a desvalorização imediata das ações e também permite prever uma alta caso o negócio não seja fechado”, afirma o analista-chefe da corretora Coinvalores, Marco Aurélio Barbosa. Ele ressalta que os acionistas minoritários interessados em manter o porcentual de participação serão obrigados a elevar em muito o investimento na empresa.
Mais do que um dilema para os acionistas, a negociação põe em xeque o modelo de desenvolvimento da Vale, constantemente comparado ao caminho tomado pela Petrobras, outra empresa estratégica para o País, mas que permaneceu sob estrito controle estatal. Alves, da FGV-SP, avalia que dificilmente o governo conseguirá segurar o crescimento da mineradora, mesmo se a negociação com a Xstrata não vingar. O segredo, defende, está na clara definição dos termos em que será concedido o aval para a expansão da companhia.
“É possível obter os compromissos de que as decisões serão mantidas aqui, ou que fornecedores nacionais terão preferência”, sugere. Ele cita a fórmula adotada pelo governo da Coréia do Sul, responsável em grande parte pelo sucesso de empresas como a Hyundai, que conquistou, com o apoio estatal, uma fatia do disputado mercado automobilístico internacional. “O sucesso, no mundo globaliza
Matéria da Carta Capital, enviada por Rogério Almeida, colaborador e articulista do EcoDebate