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Notícia

Falta comida ou é demasiadamente cara?

Tudo indica que a fome no mundo aumentará. Apesar da enorme riqueza, cada vez mais será maior o número de pessoas que terão dificuldades para ingerir as calorias mínimas necessárias para viver dignamente. Não se trata de retomar as presisões sombrias de Thomas Malthus, no século XIX. A análise é de janeiro de 2008 e subscrita pela FAO, a agência da ONU para a alimentação. O alarme tem fundamento ou, como aconteceu com o controvertido demógrafo inglês, a realidade acabará desmentindo os tambores apocalípticos? A maioria dos estudiosos acredita que há elementos para se preocupar. Mas ao mesmo tempo o desafio poderia motivar a mudança para melhorar a vida de centenas de milhares de pessoas. A reportagem é de Pere Rusiñol e publicada pelo jornal El País,14-01-2008.

O escândalo da fome em tempos de progresso econômico sem precedentes tem contornos bem definidos: 854 milhões de pessoas padecem de fome ou má nutrição, segundo os últimos dados da FAO. E os planos de choque colocados em marcha para por fim a esta mancha parecem condenados ao fracasso. Pois nem o grandiloqüente compromisso assumido na Cúpula Mundial da Alimentação, em 1996, para reduzir o número de desnutridos para a metade em 2015, nem os Objetivos do Milênio, mais moderados mas também para 2015, não parece que serão alcançados. Nem de longe.

Mas ao menos havia até agora uma mínima tendência à baixa, indiscutível em termos relativos, – de 20% com problemas de má nutrição em 1992 a 17% na atualidade -, mas confusa em cifras absolutas: três milhões menos no mesmo período, um número que pode ser confundido com o erro estatístico. O que a FAO agora denuncia não é que o retrocesso é lento, mas que a fome aumentará de forma considerável nos próximos anos. Inclusive em termos relativos.

“Está claro que o objetivo do milênio referente à fome não se vai cumprir. Mas agora nos encontramos com novos obstáculos, muito complexos, que abrem um cenário muito mais preocupante porque se pode, inclusive, ir para trás”, adverte Carlos Fernández, diretor de operações da ONG Ação contra a Fome, que acrescenta: “É preciso tomar isso a sério e já”.

As ameaças, desta vez, não vêm da bomba demográfica, como alertava Malthus, mas, sobretudo, dos preços: os alimentos básicos subiram de forma espetacular em muito pouco tempo. Segundo o Fundo Monetário Internacional – FMI, desde 2005 o milho aumentou 83%, a soja, 89%, o azeite de palma, 140% e o trigo, 142%. Globalmente, o custo dos alimentos em moeda constante é ainda inferior ao pico que se deu na década de 1970, mas há duas características tão novas quanto letais para os mais pobres: a subida dos preços é abrupta. E, diferentemente das tendências do passado, tudo indica que o preço continuará crescendo durante vários anos consecutivos.

Uma das causas principais da escalada do preço, ainda que não a única, é o auge dos biocombustíveis. Eles continuarão em alta não somente por causa do combate à mudança climática, mas também como conseqüência do aumento impressionante do preço do petróleo. Inclusive o biodiesel, mais ineficiente em termos ecológicos, é rentável se o barril do petróleo supera os 60 dólares.

Portanto, há pressão no lado da demanda para logo: os alimentos capazes de serem convertidos em energia seguirão subindo de preço e os agricultores aumentarão este tipo de colheitas em detrimento de outras que simplesmente servem para alimentar. A FAO, a OCDE, o Instituo de Pesquisa de Políticas para a Agricultura (IFPRI, na sigla inglesa), o Banco Mundial, The Economist… Todos concordam: os preços continuarão subindo até 2010. Alguns se atrevem, inclusive, a alargar o tempo como, no mínimo, até 2020.
“Os biocombustíveis criarão fome. A febre em converter comida em energia levará ao desastre. Há riscos muito sérios de criar uma batalha entre a comida e a energia que deixará os mais pobres e famintos dos países em desenvolvimento indefesos”, opina, sempre contundente, Jean Ziegler, o relator especial para o direito à alimentação das Nações Unidas.

Há dados que o respaldam: o uso do milho para a produção de etanol nos EUA, generosamente subsidiado pelo governo, multiplicou-se por 2,5, num lustro. “Os preços dos cereais e do petróleo estarão cada vez mais relacionados”, conclui o IFPRI, um dos centros de maior autoridade no assunto. As estimativas deste think-tank com sede em Washington são demolidoras: a disponibilidade de calorias serão, em 2020, em 2% a 8% inferiores às atuais, apesar de que haverá menos bocas para alimentar. O fenômeno afeta todo mundo, ainda que as regiões mais prejudicadas serão a África, América Latina e Oriente Médio.

Os biocombustíveis não são os únicos responsáveis pela subida dos preços. O boom econômico na Índia e, sobretudo, na China, também tem sua importância. O crescimento de ambos países-continentes é acompanhado por uma maior demanda de alimentos, incluída a carne. Em 1985, os chineses consumiam uma média anual de 20 quilos de carne e hoje, superam os 50 quilos. O gigantismo do país tem conseqüências mundiais: mais água e terras destinadas aos animais e aos cereais para alimentá-los em detrimentos dos humanos, maior demanda de alimentos: o resultado é sempre o aumento dos preços.

Mas não eram, precisamente, os preços irrisórios dos alimentos que impediam o desenvolvimento dos países dependentes da agricultura? Aqui não estaria uma grande oportunidade para que centenas de milhares de agricultores, sobretudo na África, saiam da pobreza? “A situação certamente pode ser benéfica em termos macroeconômicos para alguns países exportadores”, opina Harold Alderman, pesquisador da economia africana no Banco Mundial. Ele acrescenta: “Mas, inclusive, nestes poucos países, as pessoas mais pobres e, portanto, as mais vulneráveis ante a fome e a má nutrição, saem claramente prejudicados pela situação do aumento dos preços”.

Alderman admite as oportunidades que se abrem para determinados países emergentes – sobretudo, sublinha, se se acabasse com o tradicional protecionismo dos países ricos – mas insiste que os mais pobres não obterão nenhum benefício, ao menos no curto prazo: “Os pobres raramente têm terras própria nem exportam nada. Portanto, não ganham nada. Pelo contrário. As suas entradas são mínimas e agora terão que enfrentar um impressionante aumento dos preços dos alimentos básicos, que vai continuar.”

O pessimismo sobre a carestia alimentar tem um valor extra para a África: a mudança climática. Os informes científicos reiteram que o continente africano será o mais afetado e as secas anunciadas tornam ainda mais difícil a situação da agricultura. Por exemplo, o IFPRI estima que a terra disponível para plantar trigo, praticamente, desaparecerá na África subsahariana e a capacidade de produção global de cereais no continente será, em 2080, 15% menor que na atualidade.

A África, que precisamente agora começa a sair, depois de décadas no poço, defronta-se com previsões aterradoras no que diz respeito à alimentação por causa da mudança climática e do aumento do preço dos alimentos. Segundo as projeções do IFPRI, em 2080, o número de subsaharianos com problemas de desnutrição ou fome terá se multiplicado por três e alcançará a aterradora cifra de 410 milhões de pessoas.

Alguns países começaram a reagir à subida dos preços, ainda que com medidas que, segundo a maioria dos pesquisadores, podem ser, inclusive, contra-producentes: taxando a exportação para reduzi-la, como fez, por exemplo, a Rússia. Ou a principal tentação: querer estabelecer preços máximos para os alimentos.
Numa economia de mercado, querer fixar, por decreto, aumentos máximos de preços costuma ter o efeito contrário do que se pretendia: os produtos se evaporam à espera de tempos melhores e inundam o mercado negro. A escassez aumenta mais que os preços. Venezuela e Argentina, dois dos países que mais tentaram baixar os preços por decreto, agora precisam lidar com altos índices de inflação.

O consenso, no entanto, é total na necessidade de estabelecer mecanismos de compensação econômica direta para que os mais pobres não vejam sua situação piorada. Esta receita une ONGs com economistas, liberais ou intervencionistas, sem distinção de etiquetas: para uns, trata-se de uma medida conjuntural; para outros, permanente. Mas há acordo de que agora a medida é imprescindível.

“Apesar de tudo, não sou pessimista. Seria se não se fizesse nada, mas a situação também é uma grande oportunidade”, proclama desde Roma Kostas Stamoulis, chefe do departamento de Agricultura da FAO, a instituição que mais chamadas de alertas tem lançado. “A agricultura esteve abandonada durante muito tempo e agora se abre uma grande oportunidade para o seu relançamento e para destinar recursos a programas que melhorem a produtividade”.

“Tenho confiança que a tecnologia e a pesquisa melhorem a produtividade; não podemos permitir o pessimismo”, concorda Carlos Fernández, da ONG Ação contra a Fome. Os avanços científicos são tão grandes que inclusive a velha quimera de multiplicar pães e peixes parece hoje possível num horizonte não tão longínquo, pela clonagem. Malthus errou, sim. Mas os famintos seguem sendo milhões.

(www.ecodebate.com.br) matéria publicada pelo IHU On-line, 16/01/2008 [IHU On-line é publicado pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, em São Leopoldo, RS.]