transposição do rio São Francisco: Bordões surrados não resolvem, artigo de Washington Novaes
[O Estado de S.Paulo] E termina mais um capítulo da novela da transposição de águas do Rio São Francisco – tema tratado tantas vezes pelo autor destas linhas há uns dez anos neste espaço – sem que, na verdade, nada se tenha avançado no que parece ser o essencial para a sociedade brasileira: trata-se mesmo do melhor projeto para resolver problemas de água no Semi-Árido e do próprio rio ou há alternativas mais adequadas? Porque uma infinidade de perguntas feitas ao longo de décadas continua sem resposta.
Ao comentar a nova greve de fome do bispo dom Luís Cappio, o presidente da República apenas reiterou o velho refrão de que “é o projeto mais humanitário do governo; e só quem carrega uma lata d’água na cabeça e viu sua cabrinha morrer de sede sabe o que é o problema da seca”. Por isso, dele não se afasta. Já o ministro da Integração (que antes de ir para o governo era contra a transposição) se limitou a assegurar que o trecho principal da obra, no valor de R$ 4,5 bilhões (o total é estimado em R$ 6,6 bilhões), “estará concluído até o fim do governo Lula”. O bispo, ao encerrar a greve, lamentou a “subserviência” do Judiciário ao Executivo federal, ao revogar na semana passada liminar que impedia a continuação das obras. E pediu a seus seguidores que não abandonem a luta pela revitalização do São Francisco.
Então, o que cabe é reiterar algumas das muitas perguntas que continuam sem resposta.
Ao longo dos anos, o governo federal, por vários de seus porta-vozes, tem dito, para justificar o projeto, que “não se pode negar uma caneca de água para 12 milhões de vítimas da seca”; mas o Tribunal de Contas da União, num parecer, afirmou que o projeto não beneficiará esse número de pessoas; e o próprio Ibama, ao examinar o estudo de impacto ambiental do projeto, mostrou que este num momento mencionava 12 milhões, em outro eram 7,24 milhões, mais adiante 9,02 milhões e até 7,21 milhões; da mesma forma, a área total a ser irrigada com águas transpostas, que num trecho do estudo era de 161 mil hectares e em outro, de 186 mil hectares.
Segundo o Comitê de Gestão da Bacia Hidrográfica do São Francisco, a transposição atenderá a menos de 20% da população do Semi-Árido; 40% da população continuará sem água – exatamente as pessoas que mais precisam; e a revitalização do rio, prometida pelo governo, “precisa sair do terreno da retórica”; estudo de Henrique Cortez observa que, “nos relatórios da Secretaria Nacional de Defesa Civil, órgão do Ministério da Integração Nacional, ao longo dos últimos cinco anos, 70% dos municípios em estado de emergência em razão da seca não estão na área ‘molhada’ pela transposição”.
Vários cientistas e especialistas em recursos hídricos – como os professores Aldo Rebouças e Aziz Ab’Saber, da USP, João Abner, da UFRN, João Suassuna, da Fundação Joaquim Nabuco (PE) – têm dito que o problema do Semi-Árido não é de escassez de água, é de má gestão; em apoio a essa posição, tem sido mostrado que o Nordeste acumula 37 milhões de metros cúbicos de água em 70 mil represas de pequeno, médio e grande porte, enquanto o consumo urbano (humano e industrial) é de 22,5 metros cúbicos por segundo para uma disponibilidade de 220 m3/seg; a demanda em 226 mil hectares irrigáveis previstos no projeto, de 131 m3/seg, pode ser atendida pela oferta de água já disponível; além do mais, o próprio Departamento Nacional de Obras contra a Seca diz que 50% dos “perímetros irrigados” em sua área não têm nenhuma serventia; várias avaliações prevêem que boa parte da água se perderá ainda por evaporação nos açudes onde será acumulada; e que essa água custará cinco vezes mais caro do que a disponível hoje (quem pagará a diferença?).
O mais recente manifesto em apoio ao bispo dom Luís Cappio afirma que 71% das águas a serem transpostas no Eixo Norte “passam longe do sertão menos chuvoso”; que 87% das águas se destinam não ao abastecimento de comunidades carentes, e sim a atividades econômicas, entre elas a fruticultura irrigada, criação de camarões e siderurgia, voltadas para a exportação; que o projeto atende apenas a quatro Estados, quando, com metade dos recursos, seria possível atender mais adequadamente a nove.
O próprio Ibama, em seu exame do estudo de impacto ambiental, entre as 41 observações que fez, mostrou que a transposição não atende prioritariamente a populações que sofrem com a seca: 70% das águas – diz o órgão licenciador – destinam-se à irrigação e 26% ao abastecimento de cidades (quando estudo recente mostrou que o Nordeste não foge à regra brasileira – na média, as cidades desperdiçam mais de 40% da água que sai das estações de tratamento); e, o que é mais grave, segundo o Ibama: 20% dos solos que se pretende irrigar “têm limitações para uso agrícola”; estes, “somados aos solos neolíticos, notadamente impróprios para a agricultura”, respondem por mais de 50% das terras que se pretende irrigar; e “62% dos solos precisam de controle por causa da forte tendência à erosão”; ainda assim, e mesmo com oito das suas perguntas não respondidas, o Ibama concedeu a licença prévia e, depois, a de instalação.
Vários estudos alternativos têm mostrado que, com metade dos recursos previstos para a transposição, seria possível beneficiar 530 municípios e 34 milhões de pessoas; que populações a 500 metros dos canais de transposição não serão por eles beneficiadas; que a solução adequada para comunidades isoladas é a das cisternas de placa (só foram implantadas 216 mil de 1 milhão projetadas, com 85% de recursos federais e o restante de instituições privadas).
São, todas, questões graves. O novo episódio com o bispo dom Luís Cappio não encerra a discussão. A sociedade brasileira, que paga os custos do projeto, tem o direito de exigir respostas. E o governo tem o dever de respondê-las – mas não apenas com os bordões surrados que já cansaram os ouvidos.
Washington Novaes é jornalista. E-mail: wlrnovaes@uol.com.br
(EcoDebate) artigo originalmente publicado pelo O Estado de S. Paulo, 28/12/2007