Rio Madeira sob o olhar dos movimentos sociais. Entrevista especial com José Josivaldo Alves de Oliveira
O primeiro leilão para construção das usinas do Complexo do Rio Madeira já foi realizado. A Odebrecht ficou responsável pela construção da usina de Santo Antonio, que terá capacidade de gerar 3150 MW e deverá acrescentar apenas 2% à potência energética instalada no país. Mas a realização não se deu de forma calma e tranqüila. Durante o evento, movimentos sociais, como o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) e Via Campesina, fizeram inúmeras manifestações em Brasília. E, embora o leilão tenha ocorrido, a construção não ocorrerá facilmente. Isso porque os movimentos sociais pretendem ampliar sua linha de apoio e, com isso, impedir a construção do complexo. “Nós, da sociedade civil, se conseguirmos organicidade suficiente, podemos mudar bastante a história”, contou-nos Josivaldo de Oliveira, da coordenação estadual do MAB, em entrevista concedida por telefone à IHU On-Line.
José Josivaldo Alves de Oliveira nasceu no Ceará e, atualmente, trabalha no Movimento dos Atingidos por Barragens de Rondônia, lutando pelos projetos contra o complexo do Rio Madeira.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Como os movimentos sociais receberam a notícia de que a Odebrecht ganhou o leilão da usina de Santo Antonio, que faz parte do Complexo do Rio Madeira?
José Josivaldo Alves de Oliveira – Para o MAB, pela sua história, pela sua experiência, pelo enfrentamento aos construtores de barragens, pela dinâmica do setor elétrico e pelo método como é tocado e utilizado, não foi nenhuma novidade que o grupo Furnas Odebrecht ganhasse o leilão. Então, para nós só confirmou o que já imaginávamos, porque foi o grupo que fez os estudos. Desde o primeiro dia em que eles chegaram à Porto Velho/Rondônia, disseram para toda a população que construiriam as hidrelétricas. Segunda coisa: como foi essa empresa que fez os estudos, não é novidade que ela tenha saído vitoriosa desse leilão. Para nós, seria surpresa se esse grupo não fosse o vencedor.
Entregaram um patrimônio do povo a grupos nacionais e estrangeiros que têm como finalidade maior explorar as riquezas naturais e acumular muito mais lucro. Isso é o que nos deixa indignados. Nós começamos uma luta e vamos qualificá-la, para que consigamos atrasar as obras, e, se possível, impedir que esse projeto se concretize.
IHU On-Line – O que os movimentos sociais pretendem fazer a partir de agora para impedir a construção dessa usina?
José Josivaldo Alves de Oliveira – Nós, do MAB, temos pouca força, diante do capital que está aí: o capital violento, do mais sofisticado possível, do mais agressivo, do mais lucrativo, do ponto de vista de acumulação de riquezas, que atua também no setor elétrico, que é o capital da celulose, das eletrointensivas. Então, nós estamos fortalecendo a Via Campesina em nível nacional. Para nós, a luta do Madeira não é uma luta de Rondônia, muito menos de Porto Velho. Para nós, a primeira coisa é fortalecer, cada vez mais, a Via Campesina, a fim de se fazer o embate em nível nacional.
A segunda coisa é fortalecer a Via Campesina no Estado de Rondônia. Nós precisamos articular com outros movimentos que estão se tornando movimentos da Via Campesina nacional, como o CIMI (Conselho Indigenista Missionário) e a CPT (Comissão Pastoral da Terra). Estamos reorganizando esses movimentos aqui em Rondônia e pretendemos fortalecer a luta de resistência ao lado deles.
Em terceiro lugar: para nós, é fundamental a aliança com os movimentos bolivianos. A luta pelo Rio Madeira é internacional. Primeiro, porque o projeto do Madeira não atinge, do ponto e vista físico e socioeconômico, apenas as famílias, as terras brasileiras. Atinge também a Bolívia e é um projeto para quatro hidrelétricas e mais hidrovias que saem para os Oceanos Atlântico e Pacífico. Além disso, os bolivianos precisam e já estão inseridos na luta. Nós, agora, vamos qualificar esta organicidade internacional, a fim de fazermos uma luta muito mais qualificada, do ponto de vista do debate, do embate, dando voz à sociedade. Até então, temos em torno de 55 a 60 comunidades envolvidas neste projeto, o que implica muita gente. O alto Madeira é abastecido de comunidades, distritos urbanos, que poderiam ser tranquilamente sede municipal, mas são de Porto Velho, que é um município maior do que o Estado de Sergipe. Então, só de distritos na margem direita do rio, de Porto Velho para cima, há Abonan, Moduparaná, Jaciparaná, Cachoeira do Teotônio, Santo Antônio, que é o local do canteiro de obras da primeira hidrelétrica. E, na margem esquerda, existem inúmeras comunidades. Existem assentamentos com cinco mil famílias, chamadas Joana D’arc. I e II. E este povo, pelo trabalho que nós fizemos na última quinzena de novembro, no início de dezembro, de fato, não participou das discussões. Essa população foi verdadeiramente enganada, e está indignada, porque eles não imaginavam que o problema fosse tão sério.
Então, pensando para o próximo ano, muita coisa ainda irá acontecer. Pois este povo está à margem da discussão, e, agora, quer passar a ser protagonista. A prova foi a própria ação que nós fizemos em Porto Velho no dia 10 de dezembro, quando nós juntamos cerca de mil pessoas, entre crianças, jovens e adultos, na sua maioria famílias que moram à beira do Rio Madeira. Então, foi uma demonstração de força, de insatisfação daquele povo, que agora, com mais consciência, não irá deixar o seu direito ser arrancado ou tirado, sem levar em consideração toda uma vida. Existem comunidades ali com 200 anos, desde o início da estrada de ferro Madeira-Mamoré, que vem desde a Bolívia até chegar a Porto Velho, onde ficam as cachoeiras, que eles chamam de obstáculo. Ali sempre existiu um empecilho para o desenvolvimento do capital, e o capital, na época, desenvolveu a estrada de ferro, que era onde escoava a produção da borracha. E, agora, eles não vão mais fazer isso para escoar a borracha, mas, sim, para escoar a produção do agronegócio: soja, cana-de-açúcar, carne bovina, e, depois das hidrelétricas, as hidrovias.
Nós sabemos que a tarefa não é fácil. O MAB, sozinho, não consegue dar conta dessa luta. Ele terá que fazer alianças com os movimentos rurais e também urbanos. Isso porque na cidade de Porto Velho estão se constituindo vários movimentos urbanos. A população urbana da periferia, como nós dizemos lá, é muito pobre financeiramente. É uma população inteira sem trabalho, desempregada, e a violência é cada dia maior. Além disso, o uso de entorpecentes e a matança de jovens é uma coisa que nos deixa estarrecidos, sabendo que isso possui uma causa. A raiz está na falta de desenvolvimento, de acordo com aquela realidade e voltada para aquela população. E as hidrelétricas, como um todo, não irão promover, do ponto de vista social, um desenvolvimento econômico para aquela população.
IHU On-Line – A próxima hidrelétrica a ser leiloada será a de Jirau, próximo à Bolívia, que é contra a construção do Complexo do Rio Madeira. Quais articulações os movimentos sociais pretendem fazer com o país vizinho?
José Josivaldo Alves de Oliveira – Já há uma discussão da Via Campesina de Rondônia com os movimentos, as organizações do lado da Bolívia. Nós temos feito esse exercício, e vamos aperfeiçoá-lo no próximo ano. Existem vários movimentos que estão na resistência. Não é uma questão governista. É uma questão muito mais de movimento mesmo, com tom ambientalista, mas sabendo que são forças de esquerda que se somam. O muro de Santo Antônio começa em Porto Velho. O lago vai se sobrepor, do ponto de vista técnico, a todas as cachoeiras, até chegar no muro da barragem de Jirau. A barragem de Jirau vai elevar o nível da água, e irá inundar as terras bolivianas. Com isso, o projeto prevê a terceira hidrelétrica na divisa do Brasil com a Bolívia, que é no Rio Guaporé. Tem uma quarta, que fica na divisa com o Peru e a Bolívia. Há um projeto técnico que prevê tudo direitinho. O navio chega, entra no lago da barragem de Santo Antônio, chega à hidrelétrica de Jirau, para subir e chegar no Mato Grosso, e volta carregado de soja. Então, quando a Furnas Odebrecht afirma que não inundará terras é mentira: irá, sim, inundar muitos hectares de terras. Qualquer rio que for barrado significará a inundação de milhares de hectares de terra.
É diferente do Sul do Brasil, das terras catarinenses ou do Sudeste, onde há grandes ondulações, entroncamentos que podem ser barrados. Na região amazônica, é diferente. Só se consegue fazer barramentos com grandes inundações. Lá, até hoje, mantinham a população enganada. Então, naturalmente, não há como não haver futuros enfrentamentos entre os empreendedores, entre o Estado brasileiro e a sociedade daquela região. Nós, da sociedade civil, se conseguirmos organicidade suficiente, podemos mudar bastante a história. Se nós não conseguirmos acumular forças o suficiente, o MAB, o MST, os pequenos agricultores, os indígenas e os bolivianos, a história pode ser outra, acarretando muitas derrotas.
IHU On-Line – Se a construção das usinas acontecer, como ficará o abastecimento de água, principalmente para a população mais pobre?
José Josivaldo Alves de Oliveira – A região amazônica é muito rica, do ponto de vista da quantidade de água, porque o Rio Madeira tem uma vazão média de 23 mil m³/s. O Rio Madeira é abastecido por oito grandes afluentes na sua cabeceira: o Rio Jamari, onde está a hidrelétrica de Samuel, o Rio Ji-paraná, O Rio Jaciparaná, o Mutuparaná, o Guaporé, o Mamoré. O problema não é só o abastecimento. Lá, todas as terras são habitadas na beira do Rio. E, se houver políticas públicas, um agricultor precisa de uma área muito maior para produzir e tirar a sua subsistência do que no Sul do Brasil. Digamos, 15 hectares no Sul do Brasil equivalem, na região Norte, a 200. Isso porque 80% precisa ser área de preservação. Então, o problema não será só a água, mas também a terra. Lá, não há terras para fazer assentamentos ou reassentar populações, porque aquelas em que poderiam ser assentadas as famílias, o Instituto de Colonização e Reforma Agrária já assentou próximo ao rio. Então, o problema será, em primeiro lugar, a perda da identidade, porque há vários distritos que poderiam ser sedes municipais, que têm 200 anos de existência.
A segunda coisa: não tem como fazer, ou seria muito precário, reassentamento rural para as famílias.
A terceira coisa: vamos imaginar que muitos migrariam para a cidade; isso acarretaria um desastre. A violência em Porto Velho é muito alta, se considerarmos o número de habitantes, em relação às outras capitais. A sua população campesina, ribeirinha, de pescadores, é diferente daquela dos camponeses do Sudeste do Brasil ou do Sul do Brasil. Os camponeses do Norte produzem para a subsistência. Não são ribeirinhos capitalizados. Eles jamais se adaptariam àquela vida urbana. Então, os problemas do ponto de vista econômico, social, cultural, e em relação às etnias, constituirão um desastre. Além disso, nem o governo nem as empresas fizeram o cálculo de quantas famílias poderão ser afetadas e atingidas pelo complexo Madeira, ou seja, não têm uma noção exata do impacto ambiental. As empresas falavam em mil e poucas famílias. O MAB está dizendo que o número aproximado é de 5 000 famílias. Eu, num desses dias, quando estive lá, com outras entidades, percebi que pode ser muito maior o número de famílias. Então, há probabilidades de ocorrer desastres ambientais e sociais muito maiores do que muita gente imagina. Por isso, naturalmente, a possibilidade é de ter grandes reações das populações, porque os ribeirinhos não se adaptarão à cidade. A projeção do governo, pelo que se vê, é tentar convencer aquelas populações a ir para a periferia de Porto Velho. Há especulações de que se construiriam grandes condomínios. Mas imagine um camponês que esteve na roça a vida inteira ir morar em um condomínio fechado em Porto Velho. Trata-se de algo bem complicado, e com isso não é possível prever todas as conseqüências.
O MAB tem uma tarefa árdua de fazer a organização na Amazônia. Rondônia é prioridade, do ponto de vista da luta, e não vamos nos negar a fazer este trabalho. Existem muitas pessoas, muitos militantes naquela região. E nós precisamos fortalecer a Via Campesina e conscientizar a população ribeirinha, organizá-las em grupo de base, fortalecendo-a para que, no próximo ano, possamos fazer uma discussão muito mais qualificada com os empreendedores e com o governo, que irá tentar sempre defender o empreendimento. É essa a nossa tarefa, a partir do início de 2008, no Estado de Rondônia, levando em consideração que esta é uma luta nacional e internacional.
IHU On-Line – Qual é a melhor forma de energia alternativa para as populações ribeirinhas, na opinião do MAB?
José Josivaldo Alves de Oliveira – A alternativa que apontamos para os ribeirinhos é que, de fato, se estruture, ou se reestruture, o saneamento, o abastecimento de água para estradas, escolas, saúde e energia elétrica, àquelas famílias. É preciso construir moradia decente para elas, que, em maioria, moram em casinhas muito humildes, de palha, de madeira. Uma alternativa era o governo, de fato, com o dinheiro público, reestruturar aquela região. Há comunidades nas quais não é possível transitar, só se for por água. É preciso andar centenas de quilômetros para poder chegar a uma comunidade.
A nossa alternativa, até então, não seria com o projeto, mas sem ele. A alternativa é que as pessoas pudessem conviver e viver de maneira muito melhor, passando a ter luz elétrica, porque a maioria ainda vive no candeeiro. As pessoas daquela região precisam de mais estradas, de pontes naqueles igarapés. O governo deve dar condições para o povo viver, além de educação, porque a maioria não tem acesso à escola. É necessário construir postos de saúde e reestruturar toda aquela região. Esta seria, sem dúvida, a alternativa mais viável.
(www.ecodebate.com.br) entrevista publicada pelo IHU On-line, 18/12/2007 [IHU On-line é publicado pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, em São Leopoldo, RS.]