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Entrevista com Leonardo Melgarejo: Agricultura x monocultura: o empobrecimento do bioma

Defensor da agricultura familiar proveniente de famílias assentadas, o engenheiro agrônomo Leonardo Melgarejo acredita que “não é possível manter a produtividade, conservar ou recuperar o ambiente e, ao mesmo tempo, implantar estas mega-lavouras de eucalipto para exportação de pasta de celulose”. Em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, ele afirma que “a agricultura familiar depende de um relacionamento quase simbiótico com o ambiente e é avessa à monocultura porque precisa ocupar plenamente a mão de obra e minimizar riscos de falência, em situações de crise climática ou de oscilações de preços de mercado”.

Melgarejo é graduado em Engenharia Agrônoma e doutor em Engenharia de Produção, pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). É membro do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), no Rio Grande do Sul. Confira a entrevista:

IHU On-Line – Como o senhor avalia os assentamentos na região do pampa?
Leonardo Melgarejo – Existem muitos aspectos a serem considerados, na avaliação de assentamentos. De um lado, temos o fato de que as famílias acessam melhores condições de vida, realizando atividades produtivas que garantem, além da subsistência, possibilidades concretas de melhorias continuadas. As áreas atualmente ocupadas por assentamentos, anteriormente fazendas do tipo tradicional, também se mostram socialmente mais úteis, e tendem a expandir sua contribuição potencial ao desenvolvimento municipal. E isto não apenas em função das novas ocupações produtivas, em vista da renda e dos empregos gerados. Trata-se, também, do surgimento de estradas, de redes de energia, da instalação de poços artesianos, escolas e toda uma rede de serviços, aquisição e trocas de insumos e produtos. Tudo isto decorre da estruturação do tecido social que os assentamentos constituem, e modifica as possibilidades de desenvolvimento dos espaços em questão. Então, é possível afirmar que os assentamentos se constituem numa espécie de instrumento que dá base à constituição de um tecido social que atrai investimentos em infra-estrutura social, impondo nova dinâmica aos processos de desenvolvimento territorial.

Ambientalmente falando
Sob o ponto de vista do ambiente, é importante lembrar que desde 2002 a criação de assentamentos se condiciona à obtenção de Licenças Prévias, emitidas pelos órgãos ambientais. Estas LPs apontam medidas que, realizadas, possibilitam a obtenção de Licenças para Operação das unidades produtivas. Trata-se de algo importante que, infelizmente, ainda não alcança todo o conjunto dos produtores rurais. O fato de que poucos estabelecimentos do tipo tradicional se preocupam com o tema pode ser constatado no passivo ambiental identificado, e a ser recuperado após a constituição dos assentamentos, em áreas adquiridas pelo Incra. Isto também indica que, desde uma perspectiva ambiental, os assentamentos contribuem para a recuperação de problemas decorrentes da forma como aquelas áreas eram exploradas, pelos proprietários anteriores.

IHU On-Line – Em que as alterações no bioma afetam o processo dos assentamentos?
Leonardo Melgarejo – No caso do plantio de eucaliptos para exportação de pasta de celulose, em que a alteração é radical, os impactos são evidentemente negativos, já no presente, e no futuro próximo tendem a ser ampliados. Do ponto de vista produtivo, cabe lembrar que a principal atividade econômica da agricultura familiar é a produção leiteira e que os rebanhos dependem das pastagens e de lavouras associadas, que asseguram alimentação suplementar. Trata-se de plantas de raízes superficiais, que dependem de lençóis freáticos pouco profundos. Como elas irão concorrer com os eucaliptos, nas condições de escassez de chuva que são típicas da região da campanha? A natureza impediu, ao longo de milênios, que florestas se desenvolvessem na metade sul. Elas não ocorrem ali porque o ambiente não é adequado à expansão de plantas de grande porte. Então, parece evidente que o plantio de um milhão de hectares com eucalipto tende a provocar um desastre ecológico de grandes proporções. A exploração da celulose, no curto prazo, com certeza será bem sucedida e os investidores terão motivos para satisfação na primeira década. Porém, para a agricultura familiar e para o desenvolvimento territorial da metade sul, os prejuízos poderão ser irreparáveis. Os impactos serão inevitáveis em termos da erosão genética das pastagens, da redução na disponibilidade de água, do esfacelamento do tecido social e do empobrecimento territorial. No futuro, restarão os tocos como herança triste das decisões tomadas nesta época, e uma alteração no bioma que comprometerá as possibilidades de desenvolvimento das famílias assentadas e dos municípios onde os assentamentos são estabelecidos.

IHU On-Line – Como as famílias assentadas se relacionam e se adaptam ao bioma pampa e como elas reagem diante dos impactos ambientais provenientes das grandes indústrias de celulose?
Leonardo Melgarejo – As famílias assentadas recebem apoio em termos de créditos e investimentos públicos, que estimulam processos socioprodutivos compatíveis com as características da agricultura familiar. Estes investimentos incluem orientações técnicas, que objetivam consolidar sistemas locais de produção integrados aos mercados regionais. Como se trata da constituição de redes de cooperação, é evidente que ameaças externas ao projeto de futuro que está em construção são vistas com preocupação. Neste sentido, quando lavouras de milho situadas próximas a grandes áreas cultivadas com eucaliptos, pressionadas pela falta de água, começam a pendoar antes do tempo, e não produzem grãos, todos ficam sabendo. Quando um riacho diminui seu fluxo, ou uma área alagadiça desaparece, o sinal de alarme se espalha. Quando javalis, caturritas, coatis, tatus, sorros, raposas e todo um universo de animais do campo, acossados pela falta de espaço, invadem as roças e os quintais, destroem as plantações, as famílias se revoltam. Este é o quadro que nos chega, trazido por agricultores assentados. Eles dizem: “As lavouras de eucalipto estão apenas começando a ser plantadas, e a vida já se mostra muito dificultada. Se isso for adiante, como é que vai ser?”.

IHU On-Line – Como o Incra tem trabalhado com a degradação do bioma pampa pelo avanço do agronegócio e da monocultura de pínus e eucalipto?
Leonardo Melgarejo – O Incra é proprietário das terras onde os assentamentos são constituídos. Os agricultores recebem o lote através de contrato de cessão de uso, e devem seguir normas e orientações estabelecidas pelo Incra. Estas regras de conduta se prendem à necessidade de racionalização dos investimentos, em uma perspectiva de longo prazo orientada pelo Programa Nacional de Reforma Agrária, e objetivam estimular o desenvolvimento sustentável, das famílias e do meio onde se inserem. Os lotes individuais são dimensionados de forma a permitir o estabelecimento de um máximo de famílias, em cada área, considerando a capacidade de uso dos solos e outras características do ambiente regional. Entretanto, com a atratividade da propaganda e dadas as carências históricas da metade sul, existem lotes onde alguns agricultores cultivaram até 50% da área útil com eucaliptos. Estes estão sofrendo processos administrativos que, no limite, podem levar ao cancelamento dos contratos, situação em que aquelas famílias podem perder o lote, sendo substituídas por agricultores sem terra dos muitos que estão acampados, esperando avanços do programa de reforma agrária.

IHU On-Line – Como o senhor avalia a atuação do Programa Nacional de Reforma Agrária no pampa gaúcho?
Leonardo Melgarejo – A História e os ciclos de Desenvolvimento do Estado mostram a importância da agricultura familiar. Quando os colonos italianos e alemães chegaram, a região da Campanha era considerada rica, desenvolvida, e no Norte se concentravam as terras de menor valor. Os imigrantes foram direcionados para o Norte, para as áreas de menor desenvolvimento, e ali construíram, com seu trabalho, o que hoje é a área desenvolvida do Rio Grande do Sul. A produção de grãos, de leite, de aves, suínos e mesmo de carne bovina, no norte do estado, ocupou mercados e reduziu a rentabilidade da pecuária extensiva, no pampa. Tudo isso, somado à expansão da pecuária no Centro-Oeste e no Norte do país, acabou determinando o empobrecimento da metade sul, e fez cair os preços daquelas terras, possibilitando o avanço de outras formas de exploração. A Reforma Agrária se encontra entre estas opções, e a facilidade de obtenção de terras vem permitindo a implantação de assentamentos, que incorporam àquela região estabelecimentos típicos de agricultura familiar. A Embrapa realizou avaliação da produção e da produtividade observada nos assentamentos e identificou que eles estão se constituindo na base da produção de alimentos dos municípios onde se inserem. Estamos convencidos que a metade sul, assim como o restante do Estado, se desenvolverá graças à consolidação da agricultura familiar, e que a criação de assentamentos vem contribuindo de forma relevante, neste sentido.

IHU On-Line – É possível, no bioma pampa, articular a produtividade (monocultura de eucalipto e pínus para as indústrias de celulose) com a conservação e mesmo com a recuperação ambiental?
Leonardo Melgarejo – Talvez seja possível, em escalas reduzidas. Seguramente, não é possível com um milhão de hectares de eucalipto. Evidentemente, haverá um enorme empobrecimento do bioma, da qualidade de vida, das oportunidades e das possibilidades de desenvolvimento. Já a produtividade não pode ser examinada apenas do ponto de vista da rentabilidade obtida por pequeno número de empresas voltadas ao mercado externo. A produtividade deve ser considerada desde uma perspectiva mais ampla, examinando o desenvolvimento do território, a pluralidade de atividades, os sistemas locais de produção e a qualidade de vida das pessoas, em perspectiva de longo prazo. Uma comparação que leve em conta todos estes preceitos indicará que não é possível manter a produtividade, conservar ou recuperar o ambiente e, ao mesmo tempo, implantar estas mega-lavouras de eucalipto para exportação de pasta de celulose.

IHU On-Line – Como os trabalhadores dos movimentos sociais rurais se relacionam com o bioma pampa? O que eles podem ensinar sobre o cultivo da terra e a preservação do bioma?
Leonardo Melgarejo – A agricultura familiar depende de um relacionamento quase simbiótico com o ambiente. Por isso, ela não se presta para atividades centradas em uma única linha produtiva. A agricultura familiar é avessa à monocultura porque precisa ocupar plenamente a mão de obra e minimizar riscos de falência, em situações de crise climática ou de oscilações de preços de mercado. Esta é uma forma de relacionamento quase intuitiva, que os agricultores familiares copiam da natureza. No pampa, assim como nas florestas tropicais, o bioma depende da inter-relação entre muitas atividades complementares, e evolui a partir da construção de relações de reciprocidade positiva, onde surgem ganhos coletivos que qualificam o ambiente, no interesse de todos. Estas relações sinérgicas eliminam espécies que apresentam dificuldade de convivência em grupo e é por isso que uma lavoura de eucalipto não pode ser chamada de floresta. A monocultura contraria o conceito de desenvolvimento porque restringe os ganhos a uma pequena parcela dos interessados e porque implica em potencialização de riscos, ameaçando a todos. Os agricultores familiares e suas organizações podem ensinar sobre formas de relações simbióticas com o meio, já que estas são características de seu modo de vida. Existem linhas de ação muito interessantes, voltadas à recuperação, preservação e multiplicação de sementes, ao manejo e à alimentação animal, à implantação de hortas e pomares com base nos preceitos da agroecologia, e que constituem bancos de experiências bem sucedidas.

IHU On-Line – Como o senhor caracteriza o bioma pampa em relação à sua heterogeneidade? Quais são as suas principais possibilidades de uso? O que o senhor pensa sobre a criação de gado no pampa, tanto para o corte como para a pecuária leiteira?
Leonardo Melgarejo – O bioma não é homogêneo, embora possua como característica relativamente uniforme as vastas áreas de pastagens. São áreas ricas, com boa capacidade de suporte animal, que se prestam para exploração pecuária, de corte, de leite, ovinos e caprinos. Esta condição natural permite, com relativa facilidade, o desenvolvimento de redes de coleta de leite e a implantação de unidades agroindustriais para produção de derivados, com boas perspectivas de mercado. A região também apresenta as melhores condições para produção de vinhos finos, em todo o país. Aquelas terras também se prestam para produção de frutas, pêras, pêssegos, azeitonas e de hortaliças. Então, as possibilidades são muitas, e seu sucesso depende de comunhão entre os recursos terra, trabalho e capital. O caminho da Reforma Agrária passa pela multiplicação da mão de obra e pela minimização do emprego de máquinas. Passa pela policultura e pela constituição de redes que aproveitem a heterogeneidade do bioma e evitem agravamento de suas fragilidades, que historicamente oscilam em torno da concentração de terras, vazios demográficos e dependência de alternativa econômica que utiliza pouca mão de obra. O eucalipto caminha no sentido oposto e isso não pode ser ocultado, em que pese as propagandas e os interesses envolvidos.

IHU On-Line – Quais são os principais impactos socioeconômicos das indústrias de celulose para os moradores do pampa?
Leonardo Melgarejo – Um estudo apresentado à sociedade gaúcha pelo professor Ludwig Buckup (ver www.igre.org.br) mostra que haverá escassez de água no pampa, agravando a situação já típica onde boa parte dos municípios raciona água para consumo humano, quase todos os verões. Ali são apontadas reduções importantes na disponibilidade e na qualidade da água (salinização e acidificação elevados) e reduções no fluxo fluvial de até 227 milímetros por ano (52% dos casos). Também é mencionado que as lavouras de árvores determinaram que 13% dos rios examinados secassem completamente durante no mínimo um ano. Portanto, cabe supor que este tipo de crise tende a se repetir em nosso meio. A redução nas oportunidades de trabalho também é evidente: o que fariam pessoas em áreas cobertas por eucalipto? Que tipo de emprego seria gerado e que tipo de renda poderia ser esperada em atividades que, após o controle da formiga nos primeiros anos, todo o trabalho tende a ser mecanizado? Com o esvaziamento do campo, decorrência lógica do avanço das lavouras de eucalipto, equipamentos de uso social serão desvalorizados e tendem a ser desativados.

(www.ecodebate.com.br) entrevista publicada pelo IHU On-line [IHU On-line é publicado pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, em São Leopoldo, RS.]