A crise no IPEA – manipulação de sentidos pela mídia, por Nilo Sergio Gomes e Paulo Passarinho
A grande imprensa revelou, nos últimos dias, a sua face quase sempre escondida ou posta à mostra de forma sutil ou velada. Isso aconteceu na cobertura a respeito das mudanças em curso no Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, o IPEA. Em especial, nas páginas de economia e nas colunas ditas especializadas em jornalismo econômico que, sob o mote de denunciar o que qualificaram como “expurgo ideológico”, desencadearam uma campanha de difamação que ultrapassou todos e quaisquer limites das escolas e padrões de jornalismo para alcançar o mundo da luta e da disputa política. E o que está em disputa?
Mais recentemente, entre os estudos da linguagem (e sobre ela), partindo dos pioneiros estudos da lingüística, crescem e se destacam as pesquisas e as análises de discurso. No Brasil, vêm se difundindo com razoável expressão e importância as análises que tomam por base princípios formulados pelo estudioso francês Michel Pêcheux, como o que afirma que todo discurso tem um sujeito e todo sujeito uma ideologia. Isso porque o sujeito do discurso está na história e traz consigo as memórias e as ideologias de seu tempo.
Não é de hoje que os discursos do assim chamado jornalismo econômico, no Brasil, caracterizam-se e carregam consigo bem mais as certezas e convicções ideológicas de sujeitos determinados historicamente do que as contradições, paradoxos e a quase sempre silenciada polifonia de vozes que permeiam a sociedade e, em especial, as atividades econômicas. Como ademais estão presentes, essas vozes contraditórias, na vida social, atravessando e sendo atravessadas pelas contrariedades, diversidades e múltiplos sentidos, tantas vezes conflitantes, entre si.
A pesada campanha difamatória contra os novos dirigentes do IPEA, orquestrada por alguns dos mais importantes veículos da chamada grande imprensa é um exemplo dessas certezas e convicções ideológicas, de sujeitos determinados historicamente. Apesar de todos os desmentidos e dos esclarecimentos prestados pelo novo presidente do Instituto, Marcio Pochmann, as mudanças ocorridas no IPEA, com a regularização das situações profissionais e administrativas de quatro economistas, permaneceram sendo cunhadas por esta imprensa e por seus colunistas como “expurgos” de natureza ideológica.
Por que este comportamento em alguns dos jornais desta grande imprensa? O que estaria em disputa nesta produção de sentidos, propositadamente impostos e estabelecidos?
Histórico de uma difamação
A campanha teve início no dia 15 de novembro, em matéria assinada por Guilherme de Barros – “IPEA expurga economistas divergentes” –, na Folha de S.Paulo. Circula a informação que esta matéria foi instigada e inspirada por dois ex-dirigentes do Banco Central e do Ministério da Fazenda, hoje ocupando cargos importantíssimos na direção de um grande banco, aparentemente ainda de capital nacional.
Apesar de nas inúmeras entrevistas que o presidente do IPEA concedeu, explicando a natureza das mudanças e rejeitando a idéia de um expurgo na instituição – “O termo usado no texto da Folha, para mim, é uma ofensa. Tenho mais de duas décadas de atividade acadêmica. Sou polemista, gosto da polêmica”, disse Pochmann à Folha, dias depois, conteúdo que repetiria em entrevistas a O Globo e ao Jornal do Brasil – os discursos produzidos por alguns dos jornalistas econômicos permaneceram os mesmos, indiferentes às afirmações e às verdades expressas e defendidas por Pochmann.
Em sua coluna nas páginas de economia de O Globo, a jornalista Miriam Leitão escreveu, na edição de 21 de novembro, o seguinte:
“(…) Quando a notícia do expurgo chegou aos jornais, Pochmann reagiu: ‘Deve ser coisa orquestrada’. Essa reação é um clássico do autoritarismo (…)”.
Ou seja, as palavras de Pochmann de nada valeram. Nenhuma palavra, nenhuma informação sobre as irregularidades existentes no IPEA e por ele apontadas. Prevaleceu a opinião da jornalista, a mesma ditadura midiática contra a qual se insurgiu Pierre Bourdieu, em seu livro “Contrafogos. Táticas para enfrentar a invasão neoliberal” (Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998), quando apontou para o “martelamento da mídia”, “a repetição midiática” que, conforme observou, já aparece nas próprias perguntas dos jornalistas.
Este é o caso das matérias produzidas por parte desta grande imprensa, a respeito das mudanças ocorridas no IPEA. No geral, elas buscaram induzir leitores à conclusão de que estivesse em curso uma “caça as bruxas”, o que “nem no período da ditadura teria ocorrido”. Comprovando o que analistas do discurso jornalístico vêm afirmando, a respeito da seleção que é feita do que vai ser publicado, amputando-se e excluindo-se as significações e sentidos que não interessem ao ideário do “martelamento da mídia”, alguns dos economistas ouvidos pelas reportagens de economia dos grandes jornais não tiveram suas opiniões reproduzidas pela mídia.
São os casos dos professores João Paulo dos Reis Veloso, ex-ministro do Planejamento, e Reinaldo Gonçalves, do Instituto de Economia da UFRJ, que também foram ouvidos pelas reportagens dos grandes jornais. Suas vozes terminaram silenciadas porque, muito provavelmente, seus testemunhos não corroboravam a versão que interessa divulgar e “martelar” (apenas a revista Isto é Dinheiro cedeu espaço para Reis Veloso). O filósofo Michel Foucault disse, em “A ordem do discurso” (São Paulo: Edições Loyola, 1996), que toda sociedade controla, seleciona e organiza a produção do discurso. Em jornalismo este controle e seleção obedecem à hierarquia de comando dos interesses políticos e econômicos que pautam o mass mídia, embora sempre de forma sutil, velada e tantas vezes confundida com uma pretensa polifonia.
Contudo, como afirma a professora Eni Orlandi, da Unicamp, em “As formas do silêncio” (SP: Editora Unicamp, 2002), há sentidos e significações no próprio silêncio. E, ainda mais, nos silenciamentos. João Paulo e Reinaldo foram silenciados para que suas vozes não causassem ruídos, embaralhando os sentidos disputados e produzidos.
Razões de um pensamento único
As razões que levaram a que os fatos que ocorrem dentro do IPEA viessem a ser manipulados e deformados por parcela dos grandes jornais estão, muito provavelmente, relacionadas com os posicionamentos que Márcio Pochmann e João Sicsú, novo diretor do Departamento de Assuntos Macroeconômicos do Instituto de Pesquisas, têm assumido frente ao debate sobre a política econômica. Ambos são críticos contundentes das políticas pretensamente de austeridade fiscal, preconizadas especialmente pelos banqueiros e economistas relacionados aos interesses do mercado financeiro.
Pretensamente de austeridade fiscal porque esses defensores da ordem imposta pelo Banco Central conseguem construir um silêncio sepulcral em relação à irresponsável política monetária, principal fator de desequilíbrio das contas públicas. Ao invés de se oporem à orgia de gastos que o pagamento de juros provoca e à forma como a dívida pública é gerida, eles são críticos que preferem denunciar uma suposta irresponsabilidade nas despesas de manutenção da máquina pública, nos gastos sociais ou em uma excessiva generosidade na concessão de benefícios previdenciários e nos programas de transferência de renda aos mais pobres.
Mesmo depois de nomeados para os cargos que agora ocupam, Pochmann e Sicsú continuam a alertar, em seus artigos, para a iniqüidade de uma política – em curso no atual governo – que, a rigor, transfere renda dos mais pobres para os mais ricos. Ambos têm também deixado claro que, para atingir níveis satisfatórios de crescimento econômico e de distribuição da renda nacional, o papel do Estado brasileiro é fundamental, inclusive, em virtude à sua diminuta dimensão, frente às imensas responsabilidades e em comparação aos Estados dos países desenvolvidos.
Pelo visto, Pochmann foi entrevistado burocraticamente pelos jornais, pois, ao que parece, não foi “ouvido”. Ou, então, foi silenciado. Os argumentos por ele expostos não foram sequer considerados e nem se constituíram em pautas do chamado jornalismo investigativo. Ninguém ousou, sequer, investigar se havia, realmente, irregularidade em dois funcionários aposentados persistirem no uso de salas e demais recursos públicos. Ou, ainda, a situação de funcionário do BNDES, no caso, coordenando grupos em uma instituição à qual, a rigor, não pertencem. Nada disso interessou às editorias de economia esclarecer ou apurar, bem como também não foi foco de artigos de seus colunistas, tantas e tantas vezes defensores, em seus textos, da moralidade pública – mas qual moralidade defendem?
As razões de Pochmann permaneceram “excluídas” das análises e dos discursos destes jornalistas de economia. E tanto Pochmann quanto Sicsú permanecem sendo tratados como verdugos, autores de expurgos, inimigos públicos da controvérsia e do “bom senso” que a imprensa, como observou Antonio Gramsci, gosta de difundir, propagar e defender. O senso de um discurso pretensamente sem sujeito, sem ideologia e fora da história.
Retomando a pergunta inicial deste artigo, afinal, o que está em disputa?
Talvez, quem sabe, o alvo desta campanha contra os novos dirigentes do IPEA não seja a defesa da galinha dos ovos de ouro? Qual delas? A da política monetária que garante às instituições financeiras, aos bancos, os lucros mais astronômicos da história econômica do país? O que você acha?
Nilo Sergio Gomes é jornalista e editor do Jornal dos Economistas.
Paulo Passarinho é economista e vice-presidente do Corecon-RJ.
artigo originalmente publicado pelo Jornal dos Economistas, novembro, pág. 5, disponível também na rede em www.economistas.org.br